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Mostrando postagens de 2022

Toda água do céu

Não foi repentinamente. Foi aos poucos. Um incômodo aqui, uma palavra deslocada ali, uma falta de expressão na foto, outra ausência na agenda.  Foi nos detalhes e no todo da rotina que se foi mudando e desconstruindo. Um dia sem sal na Semana. Depois uma semana desgostosa no mês. Seguiu-se um mês no ano de destemperos. Foi assim, com anúncios sem alardes, que foi se fazendo a mudança. Dia desses, as nuvens chegaram com o peso do casal do Dendê. Uns correram para desligar os aparelhos elétricos enquanto outros cobriam os espelhos. Uma correria esperando toda a água do céu despencar. Foi isso.  Desse jeito. E a água despencou.  E o que ficou depois de tudo nem foram os escombros. Foi só a preguiça de recomeçar em meio à beira.  Tem gente que é só a beira mesmo - como disse o poeta - só a beira do mar.

Nu

E eu vou dormir nu, como aquele personagem de Fernando Sabino - embora também gostaria de sair por aí, diferente dele, pagando de louco despido. Não vou dormir nu porque vi em alguma rede social que é "saudável" ou "esotérico" e sim porque no encarceramento voluntário das quatro paredes do meu quarto não necessito de roupas que me limitam ao conceito de outrem e nem preciso estar minimamente "apresentável". No meu quarto os meus pelos podem cair sobre a cama, no chão, embolar nas cobertas e eu posso largar-me ao delírio de um mundo sem preocupações, mesmo que sérias. Eu não sou o que minhas roupas dizem. Eu não sou as cores que destoam e se combinam. Eu não sou nada além de pele, ossos, músculos e, de certo modo, flacidez.  Eu sou mole devido ao meu organismo e pedra no intelecto (embora preferisse também na ereção automática e autônoma não apenas nas manhãs). Nu. Vestido de pelos e despido de pudores. Eu sou o que outrem reprova sob a luz dos holofotes da...

Troca de pele

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A minha pele está secando e caindo como certos répteis que rastejam por aí. Essa pele, caindo, são os resquícios de uns dias vividos sem precaução, embora com uma certa preocupação que se espalhava pelo corpo como grãos de areia da praia esquecidos pelo banho de água doce. Agora, vendo o efeito do sol sobre a minha pele, vejo os meus caminhos e as minhas faltas, que se despedaçam ao primeiro toque de hidratação profunda, pelos recantos do quarto e do teclado. A praia, casa de todos, ameniza e acalma o corpo porque nada se pode fazer diante do movimento das ondas. E eu sou jogado para a frente e puxado como uma marionete nessa nossa casa. E decido, acima de qualquer decisão, que o mesmo não acontecerá fora dos líquidos estares.

Inverso estar

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Quando mais queremos a escuridão do quarto, sem barulho externo, sem aperto de mente, sem alma viva por perto, mais nos afastamos desse objetivo em estradas, trânsito rastejante, diálogos, compromissos entediantes. O sol do Território baiano do Sisal se escondeu assim como fez o não-entusiasmo que já existia no cotidiano, os amores outrora proibidos, as paixões em cinzas diuturnas, as esperanças últimas, o paladar da vida. Na estrada, deixando para trás estilos e vidas diversas - cansaço imenso -, com os pés disputando espaço com os insumos da vida e o calor impregnando o ar com a voz de Pablo, avisando que "sempre vai ser eu a meia sena da virada que você perdeu". Entre o brega, a sofrência, o calor, o pouco espaço, o querer estar isolado e a companhia em forçosa alegria, a estrada vai se transformando em pedágio e o horizonte direito em litoral. Quanto mais queremos, menos temos, menos somos, menos estamos.

O Mal

O mal, figura abstrata que dizem devorar a tudo e a todos, parece servir aos desejos de duas ou três pessoas em cada lugar onde quer que exista gente "feliz".  O mal que quer destruir a vizinha, o colega de trabalho, o pastor, o coroinha, um empreendimento, uma carreira. O mal encoleirado e que existe à mercê da humanidade está preso e faminto em cada habitação.  O mal, personificação do inimigo. Porém, qual inimigo? Inimigo de quem? O mal, generalista e onipresente, são os outros e nós mesmos; é a nossa vontade invejosa, o nosso mal disfarçado preconceito, nosso sexo amedrontado, nossas armas religiosas e nossa pouca profundidade.  O mal é a vergonha de si e a não aceitação dos caminhos e escolhas alheias. O mal, o mal mesmo, existe porque o bem existe e toda dualidade exige, por definição, dois lados antagônicos. O meu mal está aqui, babando, esperando para brigar com o seu.

Onde estará o refrigério?

Domingo. Na prova tinha uma história de mudança climática e o impacto na vida do brasileiro.  O que dizer sobre a vida do brasileiro?  O brasileiro que não come porque não pode e leva à boca tudo o que acha para que não se dobre em dois e faleça por inanição. O brasileiro que não tem o mínimo do refinamento em sua dieta e o que possui de culturalmente culinário ainda lhe é retirado no processo de colonização que chamam de goumertização (mais um dentre as dezenas de termos abrasileirados). A vida do brasileiro é tão controversa que ao meio-dia em ponto, com uma sensação térmica de 33°C e com algumas sombras possíveis, o brasileiro baiano prefere ficar sob o sol.  Não há protetor solar que ajude e não existe água suficiente para suprir uma desidratação nesse nível, em um semiárido que até os Deuses esperam o fim da tarde para sair de seus locais sagrados. É domingo. E no outro extremo, plena caatinga ( semiárido ainda) uma criança que só expurga suas escolhas pré-mortais pr...

A beleza

A gente gosta do bonito; do que se apresenta com agradável simetria entre o real e o imaginário. E nem adianta cantar a ladainha dos fiéis de igreja neopentecostais de que a beleza não é tudo. A beleza é  tudo sim. A beleza física que atraia é cativa. A beleza moral que encanta nos detalhes do cotidiano. A beleza intelectual que torna interessante qualquer conversa. A beleza que entra pelos buracos do rosto é vaza por aqueles do baixo ventre é a beleza do todo, de todos, do tudo. A gente gosta e precisa consumir a beleza em todas as suas formas, cores e manifestações.  A gente depende, vive e sobrevive de e pela beleza. E nada mais resta além disso.

A hora da Senhora do Entardecer

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O notebook, há tempos ligado com o Power Point aberto, aguardava minha boa vontade de parar e fazer minha obrigação cujo prazo está acabando. Sacolas espalhadas no chão denunciam minha completa falta de interesse em revolver-lhes até a completa organização. É sábado e fez tempo quente nesse pedaço da caatinga. O inverno acabou  mesmo - foi embora e nem se despediu. Dentre tudo o que podia fazer a melhor opção era observar, do alto, o findar do dia, saudando a Senhora do Entardecer.  Muda-se a paisagem, destroi-se a Lembrança e o tempo passa.  Mutante vida, apenas sua beleza não se desfaz. A Senhora dos Nove Oruns é a Mãe que rege, protege e abençoa e na ponta do seu florim está a direção do meu caminhar. Sob os telhados as pessoas não podem imaginar o tempo do findar do dia e diante da ignorância, não há o que repreender (os ignorantes não sabem o que dizem). O mundo espera. As atividades mundanas esperam. Eu espero. Porque quando ela passa todos os homens a s...

O que se quer

O que eu quero não aceita o peso das mesquinharias de gente cujo mundo é limitado apenas ao redor de si. Não aceita nada o recrudescimento da evolução social que acontece a todo o momento, em todos os lugares. O que eu quero aceita o sol do meio-dia sobre a minha cabeça por quilômetros, em uma caminhada que atravessa bairros, histórias, perguntas, pedidos e divide a rodovia com caminhões carregados de carga viva, automóveis, caixas e gentes. O que eu quero aceita o olhar escarnecedor de quem não faz a mínima ideia do que vê e, por isso mesmo, escarnece.  O que eu quero sente o calor do asfalto no semiárido. O que eu quero vê a paisagem que se monta com eucaliptos. O que eu quero é muito maior que o eu, o você, o nós.

Regras básicas do Manual do Homem de Bem

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Está na cartilha: Aos domingos ir à Igreja e aceitar tudo o que disserem, pois na casa de Deus só homens santos têm a palavra. Nas tardes de domingo e nas noites de quarta-feira, e sempre que for possível assistir pelo streaming ou num barzinho, deve-se mostrar toda a especialidade em futebol. Todo sábado deve-se tomar uma cervejinha, de preferência às custas de outros. À noite, deve-se encostar em um automóvel e olhar para os transeuntes, sempre analisando e criticando a roupa e o corpo alheios. Deve-se ter uma mulher para criar um clima de respeitabilidade nas datas comemorativas. E umas duas outras para ejacular e ser O homem-macho. Jamais se deve rejeitar um sexo gratuito. Jamais admitir uma amizade com um gay, apenas com lésbica (para manter a fantasia de um sexo a três com duas mulheres) Deve-se ter uma aura familiar. Família é tudo! - um mantra que deve ser repetido sempre que possível. Sempre ser a favor das forças armadas! É preciso aparecer de ressaca algumas veze...

Contradições nacionais

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Foto: Twitter/@oxeanso. Maceió-AL, 2022. Um país de veladas contradições que não nos sustentam no cotidiano. Redes de supermercados que nos ilude com promoções segmentadas são os mesmos que se orgulham em expansões agressivas para destruir os pequenos negócios e ser a preferência do consumidor. Afinal, sem escolha, o que o consumidor pode fazer? Nas melhores esquinas do Brasil, as redes de farmácias são tão vorazes que almejam substituir os mendigos que pedem nos semáforos. A diferença entre estes e aquelas é uma revista e não um doce ou flores de plástico.  Os políticos, servindo a grandes varejistas, ruralistas, líderes religiosos e corporações poderosíssimas, não estão dispostos a transformar contradições em coerências e o país segue sua marcha anti-povo rumo aos áureos tempos em que a fome e o desespero matavam à luz do dia e à queima roupa.  Somos contraditórios e cada dia mais dependentes de ultraprocessados, condenados e insustentáveis sistemas de sobrevivên...

De bem com os demônios

O novo dia, ainda sem luz solar direta, já começou. 1h50 da manhã. E aquele rostinho bonito com alma de velho está em seu hábito pessoal e, por vezes, secreto de ouvir músicas do século passado. Não é só ouvir qualquer música - é conectar-se a si por meio de um tempo igualmente doloroso e complicado de outras pessoas. Conectar-se a si. Quase nunca fazemos isso por receio dos demônios que podemos encontrar nas fissuras que nos fizeram desde sempre. Os meus demônios estão de bem comigo e estou pensando em levá-los ao shopping amanhã. Eu sei que eles gostam de reclamar de tudo e, por isso mesmo, será um ótimo dia.  Aquele corpo negro agora sonha acordado procurando canções e sentidos. Aquele negro não levou chicotadas físicas até à morte exaustiva. Porém, negro como é, há outros pesos que precisa arrastar? Quantos pesos?  Quantos amores? Quantos sentimentos?  Quantas palavras que não o alcança? Agora mesmo eu sou o dedo que lhe aponta o caminho que não lhe agrada; uma violên...

Entre Krusty e o Demônio Vermelho do Oriente

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Foto: Trecho de The Simpsons, Ep. 305, Fox.  O povo não sabe escolher.  No projeto de nação que escolheram para o Brasil o aspecto fundamental é a incapacidade de o povo saber escolher. Para atingir esse objetivo criaram escolas públicas ineficientes, formações de professores incapazes de uma mudança real e impactante no indivíduo formado e formador, na sala de aula e fora dela.  Limitaram o acesso a alimentos, bens e serviços e o povo vive como dá, do jeito que dá, um dia de cada vez. Assim ele não tem tempo de pensar, questionar a própria realidade e impor limites aos que se arvoram em donos do poder. O povo, subnutrido e com um intelecto muito pouco trabalhado, aceita condições sub-humanas de trabalho, alimentos impregnados de agrotóxicos e seu lugar como plateia no exercício da democracia. Às portas das eleições para o poder executivo e legislativo estadual e nacional, o povo escolhe aplaudir o que a imprensa, ressentida, resolveu apoiar desta vez. De um l...

O chicote

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A classe média, assim como as outras classes, nunca muda. Apresenta peculiaridades quando é do interior, mas sempre discursando palavras macias com o chicote nas mãos. Outro dia, andando nos bastidores empresariais dessa classe média, eu ouvi e vi as ações terríveis que o chicote do salário faz nas pessoas e as coisas que estas precisam fazer para a bajulação de todos os dias (isso ou o olho da rua, a escolha é simples). Um chicote que humilha, objetifica e sacrifica pessoas.  Seria o salário ruim? Obviamente ninguém trabalha de graça. Porém, ninguém precisa rebaixar-se à vileza para poder sobreviver. No entanto, é isso que a classe média, crendo-se dona do capital, provoca nos pobres.  Ah, os pobres! Doutrinados, manipulados, execrados, nunca deixam de ser a autoafirmação que a classe média e a elite precisam para sentirem-se dignas de atenção, sempre dos pares. Os pobres que carregam o peso da própria existência e do luxo de poucos são os mesmos que temem perder ...

O antibiótico para o defunto

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Tem dias que parece que estamos em uma novela tragicômica que somente a literatura brasileira pode produzir e que sai da criatividade do semiárido baiano. Hoje mesmo a rotina estava naquela tranquilidade das terças-feiras invernais que não sabe o limite da realidade  quando, lá para o fim da manhã, no minuto exato quando o almoço de alguns esfriava no prato e outros passavam a fome do meio-dia devido ao sistema massacrante do capital financiador do bolsonarismo, repentinamente, fotos de coroas de flores chegam no aplicativo de mensagens instantâneas.  Quem morreu?  Ninguém sabia! E nem tão rápido quanto o recebimento das mensagens, descobriu-se. Lá para as bandas de Irecê um defunto esperava, putrefazendo-se, suas coroas de flores e sua roupa fúnebre para que os curiosos pudessem dar a última escarrada verbal em sua face antes que se transforme em adubo orgânico. No meio da madrugada, porém, uma pessoa agoniada e que perdeu a hora, foi lá e pegou a última reverência ao mo...

Quanto custa a sua vida?

Quanto custa a sua vida? Perguntando assim, à queima roupa, há o escândalo e a ojeriza. Porém, reparando bem, talvez você não a valorize como pensa. Pela manhã você acordará cedo, talvez o sol ainda nem tenha raiado, quando a água chocará o seus sentidos e um alimento profanará o seu corpo por dentro. Na mente você amaldiçoará a hora em que aceitou esse destino que é trabalhar para outro, aceitando a humilhação de um salário mínimo em um país em desenvolvimento.  Quanto custa a sua vida? Será R$ 7,00 por hora ou menos?  No fim do dia, vistoriando as redes sociais pela n-ésima vez, muitas das quais escondida do empregador que insiste que você deve dar graças ao Deus dele pelo emprego que tem, verá alguns na praia, outros em shoppings, um punhado na academia e centenas de outros que seguem, como você, a vida que gostaria de ter.  No fim do dia, com os olhos cansados e um corpo moído pelas humilhações que não precisa suportar, você se preparará para mais um dia nessa rotina....

Dependência e imbecilidade

Criados para a extrema dependência, temos à disposição rede de Internet em quase todos os lugares, alimentos ultraprocessados fabricados para o vício e a doença, automóveis que nos limita e dá status social, casas inseguras e frágeis recobertas com a vergonha de não ser em um endereço valorizado. Dependentes e imbecilizados, a fome bate à nossa porta com força e insistentemente parece não querer ir embora. Vítimas de nossas próprias escolhas, estamos no caminho do degredo. Agora estamos em nossos lugares com o que se passou a considerar essencial- internet e um smartphone. Com um aplicativo ou dois fingimos felicidade e invejamos a vida alheia. Entre uma inveja e outra, deixamo-nos influenciar por alguém que diz que é melhor comprar muito mais coisas inúteis.  Quem sabe, na extrema pobreza que nos jogam (cada dia um pouco mais) e nos pretendem manter, possamos entender que há vida fora da fantasia virtual - se não for tarde demais.

Aviso

Estarei sempre além da definição. Sou o que quero ser, quando quero ser e sempre que desejo ser. Nunca estou. Sempre sou.

Oração a Oxóssi

Senhor de uma flecha só                                           Apontai-me o caminho na mata escura  Senhor do silêncio caçador                                               Ajudai-me na arte de silenciar Senhor da abundância                                       Olhai por mim na adversidade Senhor dos caboclos                                     Sustentai-me nesse meu caminhar  Senhor Deus dos tambores e das peles de caça                                      ...

O drama de todas as manhãs

Todas as manhãs é um recomeço e há sempre o que observar.  E se você trabalha para a iniciativa privada precisa compreender que todas as manhãs é sempre a mesma ladainha: reduzir custos, enxugar a folha de pessoal... Todas as manhãs você precisa lidar com o estrelismo de uns, o amadorismo de outros e com o medo de todos sobre aquele assunto - a demissão. Ficar impassível frente a tantas emoções, que nem são tão conflitantes assim, é ter a plena certeza da lama por onde anda, do próprio valor e das possibilidades que podem aparecer quando o terremoto do querer natural e explicadamente ganancioso do proprietário do capital abala as estruturas matinais. Todos os dias é o mesmo drama.  O problema mesmo é quando você se coloca na situação de mendigar um trabalho que mais se parece com um grilhão do que com um meio de vida ou de objetivos.  É sempre bom lembrar, em meio ao drama real de todas as manhãs, que você é maior que um trabalho, que uma empresa ou uma carreira. Se você...

Solitariamente em boa companhia

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Só nas últimas 24h eu pedi ao zelador para olhar o meu chuveiro elétrico e desentupir o ralo do  banheiro, questionei a minha utilidade no trabalho, recusei ser trapaceado no mercado, corrigi o preço do quilo da goiaba na quitanda (o rapaz queria vender goiaba pelo preço da pêra), manifestei-me fervorosamente contra o racismo e o preconceito estrutural que querem manter sobre os Orixás, dormi, comi, defequei gostosamente, cuidei de mim, possui o corpo alheio, excluí aplicativos do meu aparelho móvel, comprei bolo e canjica (e comi), mandei mensagens que não serão respondidas logo, desisti de estudar a mais, estudei o suficiente, fofoquei, falei com pessoas que se interessam por mim e eu por elas, verifiquei textos esperando a publicação em revista, pensei em criar novos perfis com os mesmos nomes, pensei em ex-pessoas, imaginei cenários, interagi em lives,  assisti um filme... E mesmo assim não abri aplicativos de redes sociais para informar ao mundo a insignifican...

Dos grupos virtuais

Em um desses inúmeros grupos de inutilidades e futilidades que nos colocam sem expressa permissão e que somos obrigados a permanecer por um tempo mínimo para não causar constrangimentos alheios acontecem as mais diferentes asneiras e loucuras gráficas. Dia desses começou uma discussão, em um desses grupos, sobre o baixo valor das ajudas de custos que uma certa instituição de ensino pretende fornecer aos discentes. Entre fervorosas defesas e aplausos virtuais alguém jogou na roda de debate: o que é Cadúnico? E então, para os entendidos e os que precisam desse cadastro, a discussão  os aplausos, o fervor - tudo acabou da mesma maneira que começou, repentinamente. Isso porque se uma pessoa que sequer sabe o que é o Cadúnico jamais poderá compreender como ajudas de custos, bolsas de apoio à permanência acadêmica e todo o aparato que o Estado pode e deve fornecer aos discentes em vulnerabilidade social são fundamentais para a redução da desigualdade social e o desenvolvimento da socieda...

A força insolente

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Eu poderia dizer, ébrio como os amantes da madrugada, tal qual o poeta, que a casa é sua. E, recordando fantasias que só existem na deturpada lembrança de tempos idos, poderia invocar uma realidade descabida e órfã. Mas a infernação acabou.  Não existe mais delírios amantes ou fantasiosas realidades. O amor, que nunca existiu, deixou o espaço livre.  Os quadros de vulva, da mesma ordinária vulva, deram lugar a falos de todos os tipos.  Agora é a madrugada boêmia, desejos pululantes que tomam conta da rua, palavras que surgem depois dos atos (nunca mais o contrário).  E posso ver seu sangue pulsando de ciúme e ira a quilômetros de distância como se eu fosse um tubarão sempre faminto e você, destituída de toda a humanidade, um animal sangrando em mar aberto. Eu vivo em mim e para mim em meio a xerófilas, negros costados, fortes pernas. Eu tenho em mim a força da semiaridez e o timbre do vento nas folhas secas. Eu sou o desejo encarnado e a própria tormenta ...

Sem perdão ao liberto

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Nem bem o comércio abriu as portas e o horário de trabalho começara e lá estávamos nós, reunidos em solene obrigação de desgraçados que não nasceram abastados - trabalhando ao som das correntes virtuais e do chicote da falta de privacidade de câmeras e microfones em todos os ambientes. Não bastasse isso, ainda tinha a infernação de ter que olhar para a novidade no outro e ter que acha-lo bonito com falsas expressões de admiração. Aprovar cada inutilidade que o outro faz é rebaixar-nos à mediocridade imperdoável. E isso, jamais. Embora a vida seja banal cotidianamente e tenha eventos desagradáveis dia sim e dia também, é demais ter que carregar o peso da nossa existência e a obrigação de aprovar, por convenção social, as banalidades alheias. Livrei-me do peso de amizades escabrosas, falsos amores, ilusões pobretanas, obrigações sociais.  Livrei-me de relações tóxicas (com a exceção da minha própria tóxica companhia) e dos subornos e ameaças cristãs. Livrei-me de tudo e d...

Um pobre em desabafo

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Caminhando por essas ruas em que gente da classe média não se digna a andar a pé, sinto o chão com os meus pés calçados em um tênis sem solado inviolado - quando chove sinto a água que entra e encharca a meia e quando o dia é pleno verão sinto o calor que se desprende do asfalto. Ouvindo o drama alheio sobre o preço da gasolina, penso que o meu almoço do mês inteiro poderia ser pago só com a parcela do carro alheio ou com o valor semanal do combustível. É a realidade de cada um que nos oprime em castas sociais em um país de pobres, de famintos e de mal-remunerados trabalhadores.  Tenho então a impressão de estar desperdiçando a minha vida durante as horas de um trabalho que me empobrece como indivíduo e que, simultaneamente, enriquece aqueles de casta superior. Tenho fome que nunca acaba.  Tenho cansaços que nunca cessam. Tenho desejos que existem apenas na utopia do sonho acordado. Tenho o não ter. E tudo isso é só o que tenho.

Manhã alegremente cadavérica

Já era o meio da manhã, aquele ventinho frio entrando pela recepção e indo até nós lá dentro, onde outrora foi o quarto de um alguém vaidoso, quando a ambulância estacionou perto do letreiro luminoso, apagado porque era dia. Um alvoroço tomou conta dos ambientes em um quê de insana curiosidade por uma pessoa mal-nascida e impregnada com as malezas da carne. Olhando de longe os transeuntes poderiam pensar que o instinto maternal atacou-lhes as entranhas e o amor, psicodélico e quimérico, emanava pelo ar e através de mãos contaminadas pela ganância. Sim, pensariam todos os caminhantes que cruzasse com a mimetizada cena.  No fundo, sob o manto de falsas bênçãos, está a curiosidade pela morte alheia, pela doença que devassa o corpo de outrem, pelo dinheiro que surge do chão sempre que aquele cadáver andante esterta vida.  Abutres que vivem da desgraça alheia, como os homens e mulheres de bem que controlam o vai-e-vem da rua (sempre pobre, sem asfalto e cheia de lixo), estavam todo...

A banal oração

Nem havia aberto os olhos e o barulho já tinha entrado no quarto pelas frestas da porta.  Palavras proferidas em alto tom, parecendo uma briga, que vinha de algum lugar perto. Com o passar dos minutos e o sono se afastava, a voz parecia lamentar, depois pedir. Tudo, em menos o que ela mais queria - clamar. Era o pastor assembleiano, que anda na boca do povo por fazer coisas que o Livro condena, orando pela vitória da esposa em algo banal. Um dia, se esse Deus hebraico existir e eu topar com ele, irei perguntar se esses ministros não poderiam gritar mais baixo ao amanhecer ou se quanto mais alto mais chances de conseguir a banalidade pedida. Meus olhos abertos, vasculhando as mensagens urgentes de um trabalho fundamentado na decadência do corpo humano, tornaram-se despertos só pela gritaria.  A religião que embrutece e emudece os fiéis já tornou a sociedade doente. E só de doenças anda vivendo o brasileiro cristão.

Filho do Fogo e do Trovão

Eu sou o fogo que incendeia a lenha seca  Que provoca a fumaça  Que ilumina Eu sou o fogo que obscurece as luzes ao redor Amedronta Encanta Aquece Eu sou o raio que toca o chão  E transmuta em labareda E arde Eu sou da realeza do fogo Cordas que ecoam o brado Dele Metal e madeira do Machado Eu sou o fogo Eu sou a ferramenta Eu sou o filho O Leão caminha ao meu lado E rugi à menor ameaça  E eu sinto sua força a cada manhã  O Rei brada na pedreira  E eu sou o eco da sua justiça  Na mina Na rua No Palácio  Eu sou o brilho que nunca cessa O fogo que nunca apaga A alteza descalça 

A travestida feiura

Sentado na recepção de uma home care fico observando a feiura das pessoas. Nestante saiu uma mulher, aloirada pela química agressiva para cabelos, que disse, achando-se muito elegante, que se tivesse que voltar iria "descer do salto". A mulher, cujo peso da idade consumiu-lhe as carnes e somente a máscara descartável oriunda da pandemia tapa-lhe as rugas e os dentes, tem a cara da classe média que pretende segurar a vida em corpos degradados.  A vida não aceita cárceres. A vida despreza o degredo. A beleza não parece obedecer ao dinheiro retido sovinamente em heranças travestidas de amor. E se esta ainda pode ser simulada, a feiura, tal qual o ódio, não o pode. É sempre exposta, chocante, nunca elegante.

Eu sou luz

A argila verde vai secando sobre a pele dos meus olhos, revitalizando, limpando, cuidando de mim a despeito da inexistência de uma consciência argilosa. Meus olhos, carregados de sonhos nas pálpebras,  mal sustenta o olhar sob o assédio do cansaço.  Sorrio ao pensar que a noite mal dormida teve sonhos frutos da minha necessidade, do medo e da angústia. Eles passaram ao acordar. Tudo passa. Na manhã seguinte nada resta e a radiante luz da manhã emana de mim, passa por mim, volteia sobre mim. Eu sou a luz. E a sujeita que escorre pelo ralo da pia é a sujeira sem nome que me cansa na rua, nos aparelhos conectados, na obrigação de falar com desagradáveis pessoas. É noite e um seriado de TV marca o tempo.  Em poucas horas eu serei luz novamente. Luz.

As dores dos que passam

Sentado no banco da praça Luiz Nogueira, olhando para a igreja católica do século XVIII, penso no que pode estar se passando da cabeça dos transeuntes.  O homem com relógio dourado, celular à mão e envelope de papel pardo embaixo do braço passa conversando com alguém que ficou à porta de alguma loja.  Os mototaxistas, esperando um cliente, estão jogando conversa fora. A mesma conversa de todos os dias? Os vendedores do varejo de uma cidade pequena onde todos se conhecem tentam sobreviver ao tédio, ao ostracismo de uma profissão fadada ao enriquecimento de alguém cujo nome é conhecido, mas desprovido de rosto. Os trabalhadores de uma obra pública são os únicos estrangeiros que quebram a rotina de um povo que se ocupa apenas em sobreviver em horário comercial. Olho para todos os que passam entre carros, pessoas, bancos e árvores e imagino o que lhes pode provocar aflição, tristeza, desânimo, profundo mal-estar consigo. Quantos, neste exato momento, podem estar desejando o fim de...

Largo de Santana

Tenho vontade de sentar no Largo de Santana, observar os trabalhadores que todos os dias movimentam as ruas estreitas do centro da cidade e pensar e observar. Sim, só pensar e observar o vai-e-vem de pessoas que, como eu, carregam problemas, aflições,  desejos e desamparos. De tanto querer estar leve somos pesos que se arrastam pelo Largo esperando o dia acabar. Esperando poder deixar de ser por poucas horas. Em minhas mãos há sacolas cujo peso da inflação aperta minha conta, mas que nem ofende meus dedos. Em minha mente há pódios não alcançados na luta mensal por chegar lá.  Lá!  O lugar que queremos estar para ganhar mais dinheiro e que sabemos, sem dúvidas, que é hostil por natureza. Pensamos que lá será bom. Será?  Eu sei que um dia esses ciclos de hoje que me trouxeram até esse Largo serão encerrados. E nada poderá impedir isso. E é um consolo. Não posso parar para sentar, não posso pensar e nem me demorar. O Largo é lar de movimentos e fazeres. E o que me conso...

A Fome

A fome bate à porta da empresa em que você trabalha travestida de mendigo e segue caminhando com xingamentos e críticas pela calçada à  fora. Acham ela normal - "um caminho que o indivíduo quis". Depois, no ponto de ônibus ou no sinal, você no conforto do seu carro, a fome limpa o seu parabrisa. Você nem sequer retribui com moedas. De novo, "não se pode apoiar a vagabundagem". Você chega em casa e a fome já lavou seus pratos, cuidou dos seus filhos, assumiu o seu papel enquanto você se ocupava com a máquina de moer gente.  A fome, batendo em seu estômago por dois segundos, é então prontamente atendida porque "o dia foi muito cansativo". A fome, vendada, é instrumento de poder, de política, de manipulação de massa, de revolta.  A fome tem nomes genéricos - Maria, João, Antônia, Pedro... A fome, no outro, é chacota. E esse é o problema. O outro é só você amanhã caso nada seja feito hoje.

Enquanto cai a preocupação

Sentado no vaso sanitário, um pé sobre o tapete e o outro no chão frio. O pensamento turbulento, cheio de dúvidas e aflições criadas apenas para minar a  certeza de nos objetivos e metas. Penso no que ouvi na rua, nas pequenas mentiras que preciso contar para poder conseguir sobreviver mais um dia, nas necessidades, nas faltas materiais, na fome de mundo. Penso em mim e em uma forma de ser egoísta sem prejudicar ninguém. Penso. Parecia que ia chover. Estava frio. Lá vem a pequena cólica avisando que minhas preocupações estão prestes a sair. Duro. Fico rígido lembrando daquela bunda. Tudo muda. Minhas preocupações caíram na água. Eu quero possuir aquele rabo delineado. E essa é a nova obsessão que devora todo o resto - até mesmo o bom senso.

Todos os caminhos

Todos esses caminhos que cortam montanhas e atravessam rios são também meus caminhos, com sombra, com sol a pino, sem pousada à vista, sem muito o que ver. Sempre a pé, percorrendo esses caminhos hostis em sua natureza, vou seguindo. E paro para descansar em avassalador desalento por não ter para onde ir e chegar.  Sempre a pé, confirmo a minha desolação de caminhar em um mundo que não me abriga nem me apaixona. Meu ódio derreteu sob o céu do verão e amores, sempre pueris, desfizeram-se no orvalho. Eu sigo caminhando, cada vez mais devagar.  Um dia, eu sei, eu finalmente vou parar. Não será hoje, eu sei.  Hoje eu continuo caminhando com pesos que me entristecem a face ainda ingênua do meu ser.  Hoje, ainda, eu continuo por esses caminhos, a pé, carregando esses pesos que não se deixam ficar.  

Orfandade

É fim de tarde. Da minha janela vejo a BR 116/Rod. Santos Dumont e, mais perto, vejo crianças que brincam em algazarra no coração do bairro.  Eu vejo a luz que vai se apagando tornando o verde das árvores mais escuro. Eu vejo o quintal da casa ao lado e as janelas dos fundos das casas vizinhas.  Eu vejo as luzes que já estão acendendo aos poucos. Eu vejo as nuvens de junho que trazem a promessa de frio para o centro-norte baiano. Eu vejo a minha imagem se apagando em meu antigo porto. Eu me desvejo em fotos antigas. E não há nada a ser dito sobre esse fluxo contínuo de mudanças que sucedem porque isso é a vida, incluindo sair da vida de outros, me embrenhando na minha mais íntima vida. Eu sou órfão prematuro de outrem. E isso é tudo.

A crônica corporativa do Pride Day

É 28 de junho e logo pela manhã os alarmes tocam para lembrar que é preciso fazer um post com as cores do arco-íris e expressar, também em palavras, nas  redes sociais, o quanto a Organização é engajada na luta LGBTQIAP+. Lindo de ser o quanto o mundo corporativo é colorido e "acolhedor". E assim que as imagens e os textos são postados e a obrigação do dia é dita terminada é hora de voltar à normalidade. E a normalidade significa que o funcionário gay não é medido de acordo com sua competência no trabalho, a mulher que se assume lésbica precisa seguir o padrão de comportamento que se espera "para esse tipo de pessoa";  Trans na seleção de amanhã?  Travesti aqui na empresa?!  _ Não somos preconceituosos, até temos um rapaz divertido... E o discurso conhecido até pelos héteros mais ortodoxos começa e não para até que se chegue nas linhas tortas de um certo livro religioso, cuja interpretação é quase um crime. Dizendo-se sem preconceitos essas Organizações e seus tóxic...

Uma breve reflexão sobre desenvolvimento sustentável

O contraditório termo desenvolvimento sustentável tem inquietado certas alas acadêmicas que não o aceitam como balizador das reformas nas políticas e práticas ambientais.  Alegam, como se pode ver em algumas situações, que o desenvolvimento não pode ser sustentável e chegam aos extremos, em bandeiras que somente um aristocrata  moderno com uma miríade de servos pode levantar. O fato é que esse termo é a base, de um jeito ou de outro, de práticas que demoraram a ser popularizadas nos ambientes corporativos ocidentais (o gigante oriental tem uma política muito clara sobre o uso dos recursos naturais e de como pode manejá-los em todo o globo, que não surpreende ninguém, mesmo sendo muito polêmico). Disso vemos a corrida pelo pódio de empresa com melhores práticas de ESG - nenhuma pessoa jurídica quer ter seu sistema produtivo ameaçado, e a publicidade agressiva tentando forçar os novos currículos profissionais no caminho de um corporativismo "ambientalmente sustentável" No entan...

Da autoadministração

A administração, essa ciência de e para pessoas, é cruel em sua beleza e implacável quando represada em um vórtice de idiossincrasias empresarias danosas e tóxicas. Ela exige que o gestor cumpra o seu papel, reprimindo a covardia de se eximir da responsabilidade e do poder de decidir. Ela mostra que seu cliente interno é tão importante quanto, senão mais, que o cliente externo. E pede sempre mais, em uma insatisfação constante de quem sabe que pode ter mais e melhor. Podemos sempre ter mais e o melhor recurso desde que tenhamos a ousadia de decidir, ainda que dentro do ambiente mais tóxico e improdutivo que exista. Há sempre uma decisão que precisa ser tomada. A questão é: quem tomará por você? Em um país como o Brasil, não é crível que a educação e a superação das condições anormais em que somos forçosamente inseridos sejam condições determinantes do profissional que você pode ser. É fato que "gestores" dirão que você não pode crescer mais; que o mercado quererá reprimir sua...

A desconhecida do Morro do Chapéu

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Mal havíamos saído do terminal rodoviário e o sol já havia começado a se pôr quando a mão alheia havia começado a tatear a minha calça. Ao lado, sabia, havia uma viajante cansada e entediada pela viagem ainda mais longa que a minha. Olhando pela janela eu via a paisagem deixar de ser urbana. E deixava, não completamente passivo, aquela mão passear, apertar. Libertar a mim com a naturalidade de quem toma o leite morno antes de dormir. Sentindo sua mão tremer no compasso dos defeitos da rodovia, eu via  a vegetação à beira da estrada e as peças de artesanato locais. E babava. E sentia. E gostava. Era a viagem certa, com a desconhecida perfeita.

Carta a um ausente VI

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Foto: R. R. Marajá.  Carreguei sua foto, impressa, frágil, por estados tão diferentes e com tal zelo que nada mais importava nessas estradas. Carreguei sua foto entre meus pensamentos porque mais junto que isso somente você dentro de mim, ao meu redor, sobre mim, sob mim, entrando e saindo por todos os meus poros.  Eu carreguei porque o sentimento transformou-se em sólido e utópico amor que encanta a mim todos os dias, ainda que em situações tristes ou lascivamente indecentes.  Você é meu desejo que se incendeia sobre a pele e a cama de homens e mulheres, cujas camas resistem à falta de amor e excesso de dominação.  Você ainda é o sentimento que encanta a todos em cada recanto e que se nega ser vulgarizado pelo simples fato de que é mais que o ser alguém ou estar alguém. Você ainda é e sua foto, em minha memória sempre continuará sendo o estandarte de quem eu posso ser. Mas é aqui que você fica. Olhando o sol do fim de tarde e lembrando de tantos versos q...

A última escolha

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Fonte: Rafael Rodrigo Marajá. Diariamente ouvimos as mais diversas barbaridades e que compactuam, com nosso servil silêncio, com as traduções atrozes de palavras em ações. Aceitamos a opressão travestida de democracia ditar nosso comportamento e balizar nossas ações. Deliberamos covardemente sobre como ter uma sociedade mais justa e igualitária, desde que nosso status quo não seja ameaçado pela ascensão do outro, com sua identidade e autonomia. Perdemos nosso tempo em palavras vãs sobre como poderemos crescer socialmente e economicamente sem mostrar saídas realistas, mas apenas atacamos o sistema vigente da mesma forma que velhas ressentidas atacam o clérigo por não dar-lhes toda a atenção cobrada. Somos hipócritas com diplomas, bandidos legalizados, membros de gangues aceitas pela "sociedade". Ao fim de um dia qualquer, quando o manto da noite cai sobre todos em todos os lugares e em qualquer circunstância, o que você escolheu ser te satisfaz ou te escraviza?

Premissa

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Talvez você não entenda que as máscaras existem para nos manter de pé, desejando bom-dia para os desconhecidos, sorrisos amarelos para fotografias e um sem-fim de obrigações sociais diárias.  Talvez você não entenda que apesar de ter a força de mil sóis dentro de mim, há dias que fogo nenhum espanta o frio do desalento que me ronda e me corrói o ânimo. Talvez você nunca entenda porque dentro de mim só há espaço para um - um espaço apertado e mutante. Talvez eu não queira que você entenda.  Talvez eu só queira sumir no tempo, de súbito, sem deixar a minha poeira no espaço. Talvez isso seja tudo.

Dia 06

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Minha taça está cheia de vida, esse veneno que me destrói por todos os lados e me deixa sem saídas a cada dois dias. A música preenche os recantos da casa e embaixo da escada a infância aguarda sua hora, embora há muito passada.  E eu bebo, comedidamente, a vida. Porque amanhã eu não sei se sobrará mais tempo que vida e se o que ficar for apenas meros resquícios disto que chamam de existência preciso que seja pouca a vida perdida.  Eu bebo a vida sem a prepotência de ser grande, apenas com a certeza de ser a minha. E isso basta.

Eu estou, nunca sou

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São quilômetros percorridos com adversa vontade para confirmar as verdades proferidas por Kant sobre a disciplina. Metros que nos separam e nunca nos une. União e amor, seria possível a existência simultânea dessas utopias? O que me resta não é a crença utópica em delírios sobre amor e união, como o marketing voraz tenta me vender, mas a fé em mim e no que posso fazer com o reconhecidamente pouco que tenho. E não me tenho, não te tenho, não nos tenho. Sobra-me bons momentos, recepções ímpares, estar sem nunca alcançar o ser. Abaixo de mim tocam-me músicas. Acima de mim não há nada. Eu estou a cerveja, o delírio, a chegada, a partida, o estar. Eu estou. E isso é tudo.

Sempre esquecemos o mais importante

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Aquela sensação de esquecimento vai corroendo as bordas da empolgação como um ácido fraco e persistente que foge do encapsulamento pseudo seguro.  Pensamos que esquecemos de fechar a válvula do gás, apagar a luz, trancar a porta, guardar a comida na geladeira, fechar todos os registros.  Que bobagem crer que não vamos esquecer de nada e acabamos esquecendo sempre as coisas mais importantes e, por isso mesmo, as mais bobas.  Esquecemos até do tempo, esse mesmo tempo que fingimos apreendê-lo em relógios, smartphones, números em agendas e, no auge de nossa pretensão, em fotografias e vídeos. Esquecemo-nos dele e ele jamais nos esquece.  Na rodoviária o rapaz passou correndo, um foguete em meio à babel de caixas, cores, pessoas e emoções, para não perder o ônibus que acabara de fechar a porta. O tempo não espera por ninguém. O motorista, imitando esse Deus implacável, também não espera, embora pudesse e devesse, em nome do bom atendimento ao cliente.  O ...

Inverno particular

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O portão indica quando o inverno está próximo - a fechadura sempre emperra em dias cinzas e úmidos, parece até que ele é sensível como aquela música invernal da Adriana Calcanhotto.  Nesses dias a rua alaga, como sempre acontece nos logradouros calçados apenas nos papéis burocráticos da prefeitura, e pedestre algum consegue transladar-se sem perder o resto de dignidade que sobra em um saldo de vida ridículo. Na rua, entre poças e lixo, os gatos nos observa com a altivez característica dos animais exaltados. E quem não se sente abandonado entre tamanhos descasos? Quem não gostaria de poder trancar-se em casa, esperando que tudo passe, menos a chuva? Existem abandonos cruéis demais para serem descritos e momentos tristes demais que caem na conta do cansaço diário.  Não água fresca sobre nossas cabeças e nem redes que nos descanse. Só uma incessante reunião de impossibilidades impostas goela abaixo. Abaixo de nós há somente escombros de sonhos e nada mais. Eu vi o gat...

Dias ruins e dias de chuva

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Há dias ruins e há dias de chuva. Nos dias ruins tudo acontece - a impressora quebra, o colega de trabalho adoece, a comida azeda, os funcionários do transporte coletivo entram em greve, a dona da empresa procura o que não deve e você cansa antes do meio-dia, pensando na vida de merda que o populacho tem. Nos dias de chuva desliga-se o ar-condicionado, come churrasco ao sabor da cerveja, assiste um filminho, paquera velhos amores enquanto encanta novas paixões e perturbação alguma tira o seu sossego. Acontece que dias de chuva e dias ruins podem coincidir, cruelmente, como se fosse uma brincadeira dos Deuses.  Então você para, chama um motorista pelo aplicativo e vai embora com a fé de nunca mais voltar. Ocorre de uma cerveja estar esperando junto com o carro e o motorista, alugados a preço popularmente inflacionado, como uma surpresa boa.  Você só precisa ir embora, ouvindo a história alheia, como quem lê a seção de crônicas burlescas de um tabloide qualquer. A vi...

Eu apenas queria que você soubesse

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Eu queria que você soubesse que na minha cabeça, enquanto ando por aí de ônibus lotado e em ruas sem nenhuma infraestrutura, tocam músicas de Gonzaguinha que, por vezes, não me deixam desistir.  E eu já desisti todos os dias durante anos. E Eu apenas queria que você soubesse tocou várias vezes, só para mim, em meus miolos, enquanto a mulher do Acarajé grita a plenos pulmões às minhas costas e o vagabundo incomoda o jovem do lado, no terminal lotado no ocaso dos dias - dias sempre iguais, banais demais. Hoje, porém, diferente de Gonzaguinha e usando sua oração tão linda, eu apenas queria que você soubesse que aquela alegria não está mais comigo há tempos; que meu corpo sangra, de dentro para fora, conotativa e denotativamente; que eu fiquei na estrada, alguma estrada vicinal perdida entre a Bahia e Alagoas, em um dia quente, com fome e sem ter para onde ir, ou fugir; que não acredito mais em amores, nenhum; que a vida é um estar e nada mais que isso.  Eu apenas que...

Porta-Estandarte

Embora o mundo não canse de ser indiferente e aprendamos com ele a arte cruel da indiferença, continuamos seguindo em frente, olhando para o além, mesmo sem esperança ou perspectivas. Gostaria de abrir a minha porta e olhar as nuvens carregadas com a admiração de alguém que descobre algo novo; gostaria de ficar acordado esperando o raiar do dia na ânsia de poder ter a alegria de começos e recomeços. E seria uma alegria ter a ingenuidade ignorante daqueles que em tudo creem, mesmo diante das maiores estupidezes. No entanto, o que tenho é o oposto disso tudo porque aprendi com propriedade tudo o que o mundo quis ensinar-me. E ele me ensinou a apatia, a indiferença e a melodiosa audácia das propagandas mentirosas.  Está, a desfilar na rua, a segunda-feira. E eu sou o porta-estandarte da ironia. E isso é tudo o que há para contar quando o sábado terminar.

Blasé

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Lá fora chove lágrimas de famintos que trabalham diariamente em ocupações blasfemas. Lágrimas de quem não pode comer bem para não ofender ao patrão. Chove gotas de sangue de favelados, de pretos, de pobres, de não-héteros, de mão-de-obra barata, de gente. Sangue que lava ruas sem saneamento básico e o chão de supermercados erguidos para a pseudo classe média. Lá fora tem a bebida, o sexo, a droga ilícita.  Lá fora tem a vida.

Poema cansado

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Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Que me falte cãibras Que me falte sossessogo Que me falte esperança  Que me falte alimento Que me falte a paixão  Que me falte o vil metal  Que me falte a felicidade Que me falte o estar  Que me falte o ser Que me falte o lugar Que me falte o amigo Que me falte a poesia Que me falte a energia Que me falte o amanhã  Mas que nunca me falte a ousadia de ter coragem.

Amor em oito mãos

É entendível ter três mulheres, em cidades diferentes, com aspectos culturais e físicos ímpares. Uma tem a cor da terra agreste, embora a delicadeza torne-lhe ainda mais bela à luz do sol nascente. Outra tem o frescor da noite, manhosa como uma fera em rara descontração. E a terceira possui o vigor de dez furacões em terras virgens de intempéries tão violentas. Quando sua casa é o mundo, o abraço terno e forte faz-se presente em braços coloridos, de nomes diferentes, com desejos desiguais. Há orações no almoço. Há lascívia na sesta. Há paixão bruta no amanhecer. Pode ser que alguém brade que isso seja só safadeza. Pura maldade com o coração nada romântico delas.  Elas sabem, mesmo que não digam, que é preciso mais de uma mão sobre a carne que lhes pertence em rateio.  Sim, elas bebem o mesmo leite, amassam a mesma carne, batem no mesmo lombo.  E isso é o amor em faces diversas.

A felicidade masculina

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O banheiro está livre. Vazio. Um entra. Desabotoa a calça. Espera.             Espera.                          Espera. Outro entra. Olha ao redor. Observa o ser à frente. E aproxima-se. Toca-lhe o ombro. O primeiro vira-se.  Falo em riste. A porta se fecha. Os homens são felizes                                       Somente em banheiros públicos.