Um conto para Melissa

No corredor cinza-e-branco o tempo não podia ser medido apenas por um relógio digital, na tela de um aparelho celular, cujo plano de fundo sempre lembrava o mais lindo sorriso que já viu. Também não podia ser aprisionado durante aqueles breves instantes em que a luz do visor se mantém acesa e seus olhos buscaram, naquele rosto, todo o amor que emanavam dos núcleos das minhas células para aquele corpo, tão distante e tão perto, que era retratado ali, na única forma de segurar brevemente o tempo – a fotografia.
O tempo, imensurável, transformou-se em bits, que enviaram por meio das micro-ondas, uma simples mensagem de texto que chegou atrasada no celular de destino simplesmente por que a operadora de telefonia móvel oferecia mais linhas e promoções do que sua estrutura podia suportar. Mesmo assim, talvez a mensagem tenha cumprido sua missão – já que a pessoa pode ter caído de emoção ao recebê-la – ou não. Só que outra mensagem nunca chegou de volta, dizendo o que quer que fosse.
Na divagação de uma mente exausta pelas belezas feias que desfilavam entre uma hora de almoço e a hora em que o mundo recai em um manto de várias cores, todas de uma única vez, a Distância, anjo que aproxima e faz milagres acontecerem, colocou entre um abismo e uma espada aqueles quatro olhos que um dia silenciaram em uma rodoviária de interior no momento em que um descobriu que amava o outro.
_O que foi? – Disse.
_Nada. – respondeu com os olhos fixos nos outros dois. Os ônibus entravam e saiam do terminal de embarque sempre vazios, como quando uma mágoa invade as pupilas e retira o brilho do olhar daqueles que viajam para esquecer aquilo que nem todo espaço físico é capaz de sarar. Do olhar para as malas de estranhos ela procurava espantar o medo de não estar ali, de aquele momento não ser real.
_ Você quer dizer alguma coisa. Diga! – retrucou – Você sempre cala quando é para falar e chora quando é para explodir. Diga!
_ Não é nada! – disse e virou-se procurando algo que a escondesse, mas que a deixasse ali, junto com o outro, ao som suave das palavras que não precisam ser ditas, apenas recebidas.
No transcorrer dos dias, quando falar não era preciso, ela disse aquilo que tinha calado. E explicou que os olhos negros, profundos, intimidaram-na quando ia dizer que o amava. Os mesmos olhos negros, talvez nem tão profundos assim, que temiam que ela dissesse aquilo que poderia se arrepender depois.
Esse anjo fez o milagre de abrir suas asas e salvá-los do abismo e da espada, cobrando o preço de uma separação injusta e indevida, debitada na conta dos dois, na infelicidade e ambos – mais de um que de outro -, no cumprimento de suas próprias palavras. Transformou-se em anjo mau e dele arrancou-a. Levou-a para a verdadeira distância, aquela que nem mesmo a proximidade física pode resolver. Levou-o para a incompreensão. E deixou-os, vivos, separados, feridos, livres.
Então, quando caia à tarde, sem aquelas dores pungentes, sem a saudade de outrora, com o coração trancado, apesar de sempre acariciado por tantos amores que a vida trouxe, ele ouviu dizer que o choro dela tinha motivos. Ela ouviu dizer que seu coração era de pedra. E os dois perderam-se na escuridão de seus corações; entraram em suas nebulosas particulares montando códigos indecifráveis para os menos avisados e seguiram rumo ao um triste estado de solidão, tão perto que pode ser visto de qualquer torre de um edifício residencial de oito andares.
De repente, ele ouviu estilhaçar algo. Sentiu algo afiado e transparente cortar suas pernas. Sentiu a gélida escuridão deixar seu corpo e espalhar pelo chão. Entre pedaços de um cristal que possui a cor daquilo que cobria, ora escuro, ora enlameado, ora azul-escuro, ora sem cor, notando que de seu peito caiu sua armadura mais íntima. Suas recordações espalharam-se me mil pedaços e suas lágrimas, ao ver todo o seu ser quebrantado, inundaram os esgotos e fez chover na sequidão de tantos outros corações. Por dias o sal que escorria de seus olhos temperou o sorriso malévolo de sua antiga metade, alegrou a vida de uns tantos espectadores e matou as flores que plantou na primavera em que a vida tinha cheiro de jasmim.
Entre a tempestade, no entanto, dentre as flores mortas, surgiu o vulto que recolheu os pedaços mais simples e bonitos do cristal, fez deles um vaso e plantou uma estrela. Sua luz iluminou a noite como um farol e tirou do dia as nuvens cinza, do mesmo cinza das paredes sem vida que cercam o conformismo e a tristeza de todos aqueles que não podem gritar.  E, no verão, a estrela cresceu e refletiu as melhores lembranças no céu, como se o universo fosse uma gigante tela de cinema que só passa os melhores momentos, ao som de uma melodia alegre e triste, acolhedora e quente.
Sentado ao pé do vaso estelar, sente o toque de alguém estranho, embora sempre próximo.
_Você fez isso? – ele indaga, sem olhar para o corpo do lado, com os globos oculares vidrados em uma cena particular em que, do alto de uma serra, uma cachoeira montava um oásis secreto e particular.
_ Sim, tinha várias maneiras de eu me livrar de toda aquela irritante água salgada que você deixava cair. Tinha várias maneiras de me livrar de você. Mas de todas elas preferi cultivar suas melhores lembranças e guardá-las para quando a dor não fosse mais um peso e seu amor um dia o fizesse sorrir. Assim, saí escolhendo os momentos em que você sorria, daqueles em ficava triste por causa do riso que não pode dar, daqueles em que você dormia de repente falando ao telefone e de quando você ficava olhando para o além. Juntei todos eles e peguei emprestada uma estrela da sua constelação. Coloquei-a dentro de um vaso composto por todos eles até ela sugar cada um deles como se fossem uma luz que sai de você para o mundo e no primeiro dia em que se sentiu feliz abri a tampa e deixei que visse a maravilha que foi sua vida passada. É deste céu que você vem e para ele que tem que olhar sempre que estiver triste. É desse céu que cairá seu mais sincero sorriso, um presente de você para você mesmo.  – responde enquanto observo as imagens que saem da estrela.
_ Por quê? Você não tem razão para ter feito isso.  – respondo sem saber o que sai das minhas cordas vocais, com o tremor de quem não espera ferir a quem fez tanto.
_ Por que seus pedaços, milhares de você, não dizem aquilo que você representa quando está inteiro e era preciso que seu coração fosse recomposto, alegrado e acariciado mesmo que pela pessoa errada. Mesmo vendo a pessoa outrora amada em um lugar do passado, com alguém no presente a explicar-lhe o sentido da magia espontânea que se tem ao fazer algo por outra pessoa. – e então ela começa a olhar a estrela, com um olhar vago e distante. – tenho em mim as marcas de amores sinceros aos quais dei meu melhor e tenho as marcas iguais as que você carrega. Tenho, igual a você, o mundo correndo de mim em uma sintonia estranha e temerosa. Porém, diferente de você, não tenho pedaços espalhados para que alguém junte. Apenas um inteiro que não se permite amar como quem pode morrer em vida.  – e começa a derramar lágrimas quentes.
De todas as distâncias que o mundo pode dar a alguém, a pior delas é a que separa um ser de si mesmo, de seus desejos e de sua lucidez, cujo amor próprio faz se renovar. Anjos que caem em salvação e desgraça de tantos amores espalhados por aí, as Distâncias refazem- novos caminhos quando não conseguem evitar o fracasso premeditado, imaginado e buscado pelas fraquezas humanas.
_ Olha para mim. – diz ele – se me oferecessem o infinito como prêmio por esses meus sorrisos ou um império em que esse amor que vemos pudesse ter sido cultivado, eu trocá-los-ia, sem medo e sem hesitação, por cada sorriso seu. – foi apenas quando notou a tristeza e a tranquilidade desse novo alguém que compreendeu que seu coração batia freneticamente, no ritmo de uma constante onda de bem-querer.
E ela sorriu.
Agora, com o tempo a passar por ele, olhava o corredor de longe, com suas cores sem vida, com o branco e o cinza a emoldurar um quadro novo, feio, e a Distância, aquele anjo, a acenar-lhe o adeus de quem sabe que perdeu, ou ganhou mais uma batalha sinuosa.
À sua frente, lá estava ela, com seu vaso e sua estrela envoltos em um sorriso alegre em outro dia de primavera. Um outro alguém para o mais além de uma dor.  




  




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reunião de faces

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

Nada além do que virá