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O tom da semana

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A luz entrou no quarto rasgando seu humor, como uma faca em uma bolsa plástica pressionada por pacotes de grãos e cereais. O leiteiro, primo-irmão da luz da manhã, já passava gritando, avisando aos clientes urbanos que a hora do leitinho chegou. Uma brisa fria entrou pela janela, levando os gritos do leiteiro, findando uma noite tranquila. Repentinamente, uma porta bateu e um arrastar de móveis revelou passos firmes e rápidos. Um baque surdo. Uma bolsa plástica sendo amassada. Silêncio. A porta do quarto abriu com uma força brava e uma mão descobriu o corpo sonolento. Ela tinha raiva do dia que começava, uma ansiedade incontida que trespassava-lhe a própria existência. Acordou, o amante. Olhou-a com incompreensão e desnorteamento. E um sorriso quase imperceptível pintou nos lábios quentes de uma noite bem dormida. Em pé, ela o olhava com amor e compreensão. Ele a olhava com solução, malícia, planos. Sentou-se na cama, agarrou-lhe o quadril e fê-la sentar-se no c...

Estranha História #4

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E então sairão do mar com o sol aquecendo suas peles e uma conhecida sensação de intimidade. Não a intimidade lasciva, apenas. Uma intimidade capaz de poetizar o básico e polemizar em bom som os mais íntimos segredos. Ela não era tudo aquilo que ele imaginou. Sequer chegou perto da mais tenra imagem sonhada. Ele, idem. E, mesmo assim, chegaram ao consenso elementar do "gostar daquilo que é estranho". Hoje ela saiu dos trilhos novamente e ele não sabia como tinha ido parar no meio daquele devaneio, em um dia em que todos os mortais, os pobres mortais, estavam cumprindo horário em trabalhos, academias e lanchonetes. Sabia apenas que ela, fora do mar, o deixava no mais completo vácuo, sem ar, sem chão nem direção. Ela puxou o lençol e revelou suas curvas. Ela puxou a imaginação dele para além do cômodo e o instigou a ir além. Ele sabia que ela era perigosa. Sempre soube. E foi por isso que se deixou levar. Mas agora, parado ali, com a chave na mão e alguém tagarelando...

Luz e esquecimento

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View of Toledo. El Greco. (Greek, Iráklion(Candia) 1540/41-1614 Toledo) A luz e a escuridão são as principais colunas que sustentam dogmas religiosos, crimes, teorias sobre o bem e o mal, o lado bom e o lado ruim do homem, objetos e animais. E tudo o que o homem não entende ele demoniza e relega ao lado escuro de um mundo que só existe na cabeça meramente bipolar onde a religião habita com predominância. Então um dia, lendo uma das maiores autoras de todos os tempos, deparei-me com o conto Enquanto houver luz , de Agatha Christie. Com uma sensibilidade impressionante e tratando da relação desencontrada daquilo que pode ser descrito como um triângulo amoroso, Christie revela a principal causa que norteia dezenas de relacionamentos: o medo da pobreza e a incapacidade de enfrentar os medos de frente. O amor entre duas pessoas pode ser algo que ganhe dimensões exorbitantes e ultrapassar a lógica justificando-se nas insanidades cometidas “por amor”. Nesse conto é possível perceb...

Um conto para Melissa

No corredor cinza-e-branco o tempo não podia ser medido apenas por um relógio digital, na tela de um aparelho celular, cujo plano de fundo sempre lembrava o mais lindo sorriso que já viu. Também não podia ser aprisionado durante aqueles breves instantes em que a luz do visor se mantém acesa e seus olhos buscaram, naquele rosto, todo o amor que emanavam dos núcleos das minhas células para aquele corpo, tão distante e tão perto, que era retratado ali, na única forma de segurar brevemente o tempo – a fotografia. O tempo, imensurável, transformou-se em bits, que enviaram por meio das micro-ondas, uma simples mensagem de texto que chegou atrasada no celular de destino simplesmente por que a operadora de telefonia móvel oferecia mais linhas e promoções do que sua estrutura podia suportar. Mesmo assim, talvez a mensagem tenha cumprido sua missão – já que a pessoa pode ter caído de emoção ao recebê-la – ou não. Só que outra mensagem nunca chegou de volta, dizendo o que quer que fosse. N...

À uma velha companheira

Venha! Sente aqui ao meu lado, de você não tenho medo. Seu cheiro não me enoja tampouco perfuma-me. Olha como sua obra está bela! Veja a realidade do deus-verme entre o ventre da sua escultura surreal. Por que não fala dela? Por que não a exponhe? Há problemas nessa arte um tanto incomum? Não. Você não aparece ao público apenas por vaidade, acha que seria humilhante ver face-a-face a realidade nua do cotidiano de seus fantoches. Pensa que não sabemos como é trabalhoso levar tantas abstrações para o além azul? Sabemos que pode ser difícil e logo agora quando tantos seres  resolvem partir para o longíquo  abismo do recomeço sem perguntar-te se é possível voce resolve chorar! Mesmo assim deveria sorrir quando chamo-te para festejar a ingratidão da vida, ao desconcerto de tantos erros e acertos de gente ignorante. Nós humanos conseguimos sorrir da desgraça, você não? Venha festejar! Acompanha-me nas músicas que gosto, nos doces que aprecio nas melhores horas do descanso...

A vida e a Sereia

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Foto: imagem da internet A vida é um rio de verdades e mentiras tão bem contadas que juntas formam um conjunto uno do qual atribuímos nossas conquistas e ressentimentos. É um rio de afluentes podres e desprezíveis habitado por todo elemento dúbil de um universo ora detestável ora dócil, mas que nos levam a um oceano de incertezas cuja única qualidade é a sua própria existência. Águas que me levaram durante uma vida a todos os caminhos decadentes possíveis, mas que sempre me fizeram sentir vivo. Naveguei por estradas de barro e lama em muitos carnavais procurando uma razão de viver e de exprimir em sua totalidade o meu ódio e o meu prazer de ter prazer em estar vivo, os vícios e as minhas desilusões preconceituando devaneios de uma juventude precoce e o ônus de uma velhice anunciada pelo tempo. Calejei esse espírito com amores odiáveis de tanto amáveis, que, entre orgasmos de realidade arremetiam-me em um crepúsculo de irreverência de uns tantos sexos desprazeirosos que acom...