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Mostrando postagens de 2021

Mandar os malditos embora

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Xilogravura: A Sibila Tirburtina contando ao Imperador Augusto sobre a vinda em Cristo, após Parmigianino. Sec. XVI. Metmuseum.   Decisões são necessárias. Livrar-se de indivíduos que se divertem ao provocar prejuízos e malefícios a outrem não é uma mera decisão, mas um ato de ousadia que sempre será rechaçado por esse tipo maldito de indivíduo.  É necessário afirmar-se e criar o próprio ambiente seguro não como necessidade apenas de ego e sim como forma de autopreservação e amor próprio.  O não deve ser jogado em suas faces, sem piedade e de forma direta e incisiva.  O repúdio a esses seres não nos torna iguais a eles e nem piores que suas ações, apenas sobreviventes em um mundo cuja decadência encontra abrigo em casas de porcelana.   E bani-los é um ato de amor e caridade, ao eu interior que a tudo suporta com medo da rejeição social - um medo paralisante que tem origens nas feridas abertas de famílias e caracteres pessoais de, outrora, crianças rejeitad...

Emoções em signos

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Xilogravura: A competição entre Apollo e Marysas. Niccolò Vicentino. Metmuseum.  Meus vizinhos amam músicas sertanejas e bregas que exaltam as dores emocionais. Do meu ambiente home office eu as ouço e silencio a minha trilha sonora de modo que consiga ouvir a letra, a melodia, os gritos e as tentativas de cantarolar o hit do momento.  E sempre fico avaliando não a letra cafona ou o ritmo inexpressivo, mas a capacidade de auto identificação com a composição, com as situações da vida que nos impulsiona a traduzir em signos todas as emoções que nos alegram e afligem na montanha russa brasileira que é viver em condições difíceis e com pessoas não menos complicadas. E se não é possível mudar, de imediato, a situação que ao menos consigamos embriagar o corpo, o intelecto e o espírito com música, álcool e paixões requentadas e lembranças adocicadas pelo tempo.   Meus  vizinhos vivem uma vida pobre, que beira a miserabilidade material e imaterial, e parecem não se impo...

À Senhora dos Ventos, dos Raios, dos Oruns

 Minha Senhora, o entardecer hoje foi nublado, com brisas frias que embalam sestas em dias quentes e pós trabalho intenso. E seus pontos ecoaram por entre meus pensamentos e minhas mãos, tecendo quadros de gratidão e revoadas alegres.   O teu braço estendido, acalentador, é a minha direção; a minha baliza na desordem e a força que me mantém no caminho.  O teu raio sou eu. A minha força és tu. O teu florim sou eu. O vento que me protege e acalma és tu. Porque nas tempestades eu estou em casa, flanando com a calma e a agilidade de uma borboleta; e em meio a áridos terrenos eu estou em tranquila caminhada, como o búfalo em seus ciclos migratórios em terras distantes.  Os meus inimigos ficam à margem do caminho e o horizonte tem as cores da tua dança. E diante disso eu só consigo bradar EPARREY!

Em estado solo

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Quadro: Retrato de Mulher, possivelmente Ginevra d'Antonio Lupari Gozzadini, Atribuído ao Maestro delle Storie del Pane. Metmuseum.   Noites de delícias e sossegos. Dias de trabalho e sons diversos. E entre o passar das horas e a imposição de limites para o fim de atividades, o fim de auto pressões sociais, o fim de velhos hábitos, existem  descobertas que nos provocam e tornam-nos interessantes - e é sempre melhor que seja para si do que para outrem.  Porque quando ficarmos sozinhos - presos em nossos mundos físicos, com tantas limitações quantas forem possíveis existirem em ambientes trancados, sem o verdor natural do mundo, com odores vendidos em farmácias e comida competentemente pré-cozida por multinacionais que nem sempre são boas para nossos corpos frágeis e viciados - precisaremos ter com o que nos divertir e distrair. As noites deliciosas podem ser com única companhia e as de sossego, idem.  Os dias de trabalho podem ser mudados e reformados. No entanto, o l...

É a primavera chegando ao fim

Vídeo: Rafael Rodrigo Marajá Da janela podemos ver um mundo rotineiro, cronometrado, dividido entre achismos e vizinhos. E em uma realidade pandêmica, atribulada, ocupada, preocupada, nossa janela, por muitas horas do dia, são de apenas algumas polegadas.  De repente, sons celestes, tímidos, são ouvidos e a tensão aumenta. Para os fiéis, são os primeiros sinais que o Rei está passando.  A chuva cai. As janelas são fechadas. O povo corre. E então o verão mostra sua face durante a primavera. É o fim para ela. É o renascimento para ele.  É o espetáculo belo, gratuito, aleatório, perigoso e dominador.  Os filhos da tempestade não temem e os Orixás mostram, embora não precisem, a vida que flui, muda, transforma e é transformada.  Vídeo: Rafael Rodrigo Marajá

Entre respostas e mutações

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Escultura: Um hipócrita e um caluniador. Franz Xaver Messerschmidt. Metmuseum. Em meios aos afazeres do cotidiano e do completo abandono das redes sociais deparei-me com uma notificação da BBC News Mundo sobre a nova variante do SARS-CoV-2 detectada no sul da África. Parei um minuto e fui ler a matéria, como todas as outras, muito boa.   E qual não é a minha surpresa ao chegar ao fim da notícia e deparar-me com a seguinte afirmação  " La lección de la pandemia es que no siempre se puede esperar hasta tener todas las respuestas ( BBC News Mundo , 2021, online)." E fiquei a cismar com essa afirmação a tarde toda não porque seja complexa ou extraordinariamente impactante, mas porque revela o quanto somos dependentes de respostas e, nessa sociedade cada vez mais doente pelo imediatismo provocado e fomentado por ambientes virtuais e sociais, acabamos por levar ao precipício a nossa saúde mental sempre que esse imediatismo e essas respostas não satisfazem nosso sadomasoquismo....

Aceitação algoritmizada

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Escultura: Cravo. Michele Todini, Basilio Onofri, Jacob Reiff. Metmuseum.   Querer a aceitação do outro sempre foi um problema - para todos. Para conseguirmos essa aceitação, transitória e iludida, submetemo-nos aos mais degradantes estados sociais que podemos atingir. Com as redes sociais em alta e a pandemia chicoteando-nos por todos os lados, passamos a admitir o ridículo como pré-requisito para sermos legais, engajados e respeitados. Dançar com baldes na cabeça ou segurar em um fio energizado com os pés dentro de uma bacia cheia de água passou a ser o mínimo para conseguir uma aprovação de poucos segundos. E por quê? A nossa solidão, os nossos vazios e os nossos dilemas íntimos explicam isso. Não seguir uma pessoa é não gostar dela. Não estar presente em lives é ficar pelo caminho. Não ter engajamento é simplesmente desaparecer em um mar de desconhecidos.  E a morte social ganhou outros patamares.  Ter um perfil privado e ter, simultaneamente, poucos seguidores signif...

Colecionáveis inúteis

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Quadro: A Month's Darning. Enoch Wood Perry. Metmuseum.   Passamos a vida colecionando inutilidades. Diplomas, livros, paixões, títulos, bajulações, mágoas, alegrias, lugares e pessoas. Há quem colecione resíduos inservíveis. Colecionamos tudo o que nos é possível.  Só nos escapa o autoconhecimento da inutilidade dos objetos, materiais e abstratos, que juntamos com tanto esforço e sacrifício. E quando paramos para observar bem, o motivo das coleções são as faltas - de amor, de segurança, de propósito. Colecionamos em inutilidades a nossa falta de coragem de assumir nossas fragilidades e incoerências, como se tudo o que nos cabe na vida é preencher vazios - que nem sempre são criados por nossas ações. E então, um dia tranquilo qualquer, tiram-nos nossa coleção e deixam-nos órfãos de tudo aquilo que ocupava um espaço ocioso e que nos impedia de vivermos em plenitude. Órfãos de quinquilharia. Órfãos de inutilidades. Órfãos, simplesmente. Então começamos de novo. E o que colocar n...

Error

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Quadro: Sibylle. Camille Corot. Metmuseum.   Com frequência somos instados a sermos assertivos sempre, como se soubéssemos das respostas certas para todas as perguntas imagináveis e inimagináveis que possam nos fazer. A ideia que jamais poderemos errar é colocada em nosso íntimo e o medo da falha nos aterroriza, paralisa, imobiliza qualquer criatividade.  E em todos os planos que elaboramos o erro não tem lugar. Errar significa o fim do jogo; o fracasso que não poderemos suportar. Essa ideia resiste ao tempo e as mais diversas dificuldades. Errar e admitir o erro envolve, falsamente, a ideia de fracasso - e não fomos educados para compreender os motivos que nos levaram ao erro. Ao contrário, fomos educados para a competição nua, crua e cruel. Nada além disso. E isso contribui para tantos desenganos e suicídios.  Como não errar? Por que o erro existe? Como superar o erro? Em tempos tão padronizados, onde o que existe são figurações para redes sociais, o que nos sobra são m...

Sol em Sagitário

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Foto: Constelação de Sagitário. NASA.  No ambiente ecoa Queen, na versão da Royal Philharmonic Orchestra. A rua parece estar em calma, numa versão pavorosa de velório que só ocorre em certos dias de certos meses em certos momentos do ano.  E o instante é de parada de manutenção obrigatória para a minha mente, o meu corpo; tudo em nome da boa e vindoura produtividade.  O dia, no entanto, foi de sonhos - tão reais e vívidos que não sei em que parte é que eu voltei à vigília. A questão não é a realidade vívida do sonho e sim quem estava lá. A aventura de reviver antigos e sempre presentes laços torna tudo mais divertido e aventureiro. Uma pena mesmo é que os sonhos, por vezes, demorem tanto para se concretizarem. No ar parece existir um clima diferente. Um estado de mudança iminente que se faz valer da repentina calmaria e da inexistência de problema para provocar o novo. Parece ser o instante último antes da tempestade aparecer e bagunçar tudo, nem sempre para a pior. ...

Diário de um abandonado III

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Escultura: Imperador Trebonianus Gallus. Metmuseum.  Gratuitamente somos abandonados - de repente deixamos de ser interessante ou muito aquém das expectativas de outrem.  E, por vezes, pensamos que o problema existe em nossas ações e discursos cretinamente aprendidos reforçam essas ideias. ainda que não tenhamos consciência imediata disso.  O pior não é quando somos abandonados - isso é de se esperar do egoísmo inato. O pior mesmo é quando nos abandonamos e deixamos que outrem tenha o poder de perpetuar esse abandono. E embora  nem sempre temos a consciência dos atos que provocam os sentimentos baixos que nos levam ao abismo do auto abandono, temos que tomar as rédeas da nossa vida, do nosso querer, do nosso destino  e fazer do eu interior a força capaz de rejeitar o egoísmo e as ações de outrem. O abandono é abandono. O abandono dos outros é pueril - sempre retornam. O auto abandono é que deve ser tratado - é o único que tem cura e que pode fazer estragos inima...

Regra tóxica

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Arte: Cremorne Gardens, No. 2. James McNeill Whistler. Metmuseum. Vivemos, quase como uma regra básica da vida, relações tóxicas e destrutivas - em casa, na religião, no trabalho, na escola/universidade. E parece ser o objetivo dessas naturais relações danosas é testar nossa capacidade de livrarmo-nos não apenas das pessoas viciadas nesse tipo de domínio e ambiente como também provocar-nos à mudança. O problema é que de tanto convivermos em laços tóxicos, e ambientes não menos diferentes,  acabamos acreditando em falácias que nos enredam em ficções da vida real, ancorando nosso potencial em lamaçais.  Um dia precisamos acordar, seja por meio de um baque quase insuportável, seja por não aceitar a liberdade podada e diluída que nos oferecem. Infelizmente a maioria de nós já possui desculpas para não mudar o status quo dessas relações tóxicas - falta de dinheiro, "amor", "afetividade inata", obrigações. Não percebem que o tempo passa e o desperdício desse bem é irrem...

Diário de um abanadonado II

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Arte: Vale da montanha com planalto. Hercules Segers. Metmuseum.    Sim, a hora chega! A fatídica hora em que o fastio das coisas cotidianas nos toma de assalto, jogando-nos em um estado depressivo; um estado de tristeza; um estado em que nada é capaz de satisfazer a necessidade de vida  que, recorrentemente, temos. Nesse momento a luxúria, a gula, a ira e as mais diminutas observações não nos demove da letargia impeditiva de viver. Ou somos experts ou completamente inaptos nesses doces pecados católicos, o que resta é somente uma ausência pura e simples. É nesse assalto que compreendemos os bêbados, os drogados nunca satisfeitos, os suicidas, os antissociais, os doentes mentais. É um assalto que não deixa restos e nem vítimas e nunca termina.  O hoje está sendo assim. O ontem foi assim. O amanhã foi roubado.  

Nota de um meio-dia pandêmico

Nossas percepções estão alteradas com esse isolamento. Os solitários ficaram ainda mais solitários; os amantes perceberam que o sexo não é satisfatório e o amor inexistente; os aplicativos de relacionamento sobressaíram à imbecilidade inútil de redes sociais egocêntricas.  Os relacionamentos fracassados mostraram-nos  o vazio existencial e crises etárias explodiram com o nosso frágil emocional, que nenhuma religião engessada é capaz de sanar.  Os objetivos e as metas de lucro caíram por terra. E a cultura, essa audaz e feroz dama, foi a única que nos estendeu a mão diante da insignificância das nossas corridas diárias.  Talvez seja por isso que minha vizinha, depois de uma festa de aniversário que terminou no fim da madrugada, levantou tão cedo para ouvir os melhores sucessos de uma recente extinta. O medo da morte, a consciência da brevidade de uma passagem incerta por essa encarnação, torna-nos patéticos, medrosos, temerários.  E dentre tudo o que pode ser dit...

Diário de um abandonado I

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Foto: Sofá. John Henry Belter. Metmuseum.   Eu não sei por onde começar. E talvez seja muita pretensão escrever sobre o meu abandono em um mundo de abandonados e invisíveis. Mas se cada um tem sua dor e sua alegria, em uma eterna roda dentada que nos deixa moídos e fragilizados sempre que somos obrigados a impulsioná-la, temos, então, histórias e olhares diferentes e comoventes, embora o cenário pareça sempre o mesmo.  E, antes de tudo, você precisa saber que nem um psicólogo dos serviços públicos eu consegui encontrar para chorar e desabafar, deixando-o perplexo, incomodado e esquecido no "até a próxima" que jamais aconteceria.  Neste momento eu estou sentado em uma mesa doada, ouvindo Vapor Barato, na interpretação de Gal Costa e Zeca Baleiro - e essa música aleatória descreve muito bem o meu estado de espírito.  Eu estou cansado. Exausto. Deprimido. Falido. Desiludido.  Não sei onde eu comecei a errar tanto e sei também que o problema não está exclusivamente ...

Entre sujeiras e miolos XIX

 Jura Secreta. Você se Lembra. Caravana. As músicas se revezam na playlist aleatória. Eu tento resolver problemas de conciliação bancária da NEO Benefícios. Lá fora, outras músicas, outras vidas,, outros sofrimentos, outras alegrias em stand by.  O vento me revela tudo, até os desejos que ficam pelo caminho.  E tudo o que penso são ansiedades (descobertas recentemente) por uma vida que me absorve, mastiga, rumina e cospe de volta.  E o que eu quero? O que eu gosto de fazer?  Passou da hora de fazer a minha própria felicidade, da forma mais egoísta que posso encontrar - limitada a mim mesmo.  Porque, olhando bem, reconhecendo o que gosto, quero e preciso vivenciar, o medo de não ser quem preciso ser é tão pequeno que chega a ser vergonhoso negar-me a mim mesmo esse direito.  Always Remember Us This Way. Miragens. Hallelujah. 

Entre sujeiras e miolos VIII

O vento entra com toda a força e o sol castiga os transeuntes lá fora. Aqui dentro, da casa, de mim, dos meus miolos, há o embalo de Pessoal Particular. Lembranças de priscas eras pululam em minha mente, em meu sangue, em minha retinas. E o calor já não é mais o desse lugar, o cheiro não é mais da vegetação que seca no quintal alheio. Eu não sou eu.  E há alegrias, pequenas, sedimentadas, que ancoram minha existência volátil nesse momento.  Ah, a delícia de ter vivido coisas simples; de ter gostado de pessoas difíceis e de ter sido difícil.  Não, isso não é coisa de quem está prestes ao suicídio e também não são reminiscências de um senil que não sabe mais se situar no tempo e no espaço. Talvez seja os dois ou algo com nome difícil que os cultos e psicólogos saibam. Eu não sei. Não estou interessado em nada.  Estou mais para Gisberta ou o velho Francisco, oscilando sempre entre esses dois personagens, que vejo na Rua da Frente, encostados na Ponte do Imperador. ...

Crônica de uma vida insuficiente XXVII

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Obra: A Meditação da Paixão. Vittore Carpaccio. Metmuseum.   Quantas e quantas vezes sofremos por não ter aquilo que queremos?  Sem saber que o objeto desse sofrimento não nos fará mais felizes, apenas mais um na imensa multidão que transita para lá e para cá na roda opressora de vidas sugadas até a última gota por trabalhos diminutos e chefes desprezíveis; sugadas por relacionamentos infelizes; sugadas por desejos desnecessários.  Quando conseguimos o que queremos notamos que não sabíamos o que queríamos e que o sofrimento por não ter tido ou ter demorado a conseguir era não só desnecessário como torturador em sua ideia mais fundamental. Nossa vida é insuficiente para suprir as necessidades de pessoas egoístas e de empresas ávidas pelo crédito que bancos nos concede tão ternamente.  Nossa vida é insuficiente para alcançar a fama e a fortuna de pessoas famosas e influentes - e temos a necessidade dessa cobiça? Nossa vida precisa ser suficiente para nós e para as noss...

Carta a um ausente IV

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Obra: The Iconography. Anthony van Dyck. Metmuseum.   Não é mais uma questão de não saber. Você sabe. Eu te falei. Mandei e-mail. Chamei a atenção na rede social menos sociável que existe. E nada. Nada. Para bom entendedor, basta.  Mas eu queria te dizer, que depois de tudo e de todos os anos, eu posso falar que você é o amor da minha vida.  E isso implica em uma miríade de sentimentos. E mesmo que você não queira saber, sempre será a minha a minha Miragem.   

Entre sujeiras e miolos VII

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Obra: Um ourives em sua loja. Petrus Christus. Metmuseum Quando foi que eu me perdi? Onde foi que eu me deixei? Perguntas que só eu posso responder e que eu não posso porque não sei por onde começar. Meus miolos falham - sempre falham quando precisamos.  Esses mesmos miolos que são a minha salvação são também a minha desgraça. É a desgraça da mulher da casa da frente que não sabe mais viver com a autoestima saudável e com a certeza da plenitude de uma vida pobre. É a desgraça da dona do açaí que não vê a violência do próprio relacionamento - abusivo sob a a maquiagem do ciúme. É a desgraça de quem precisa imprimir sofrimento ao outro para crer-se feliz. Meus miolos, os seus miolos, são a sujeira que não conseguimos limpar, por mais que eu, ou você, tente limpar com poderosos alvejantes.  A vida é parte da pergunta e da resposta e tê-las em completude significa findar , em definitivo, a caminhada nesse vale de lágrimas, sombras, curtidas e criticas. 

Entre sujeiras e miolos VI

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Foto: Suit. 1760. Metmuseum.   Algumas pessoas ficam horrorizadas quando menciono que não carrego nenhum documento pessoal de identificação sempre que saio de casa, independente do meu destino (a menos que eu saiba que vou realmente precisar). E isso porque se eu cair morto no chão devo ser enterrado como indigente, no mesmo esquecimento no qual vivo a minha vida. Qual a diferença de ser identificado quando eu morrer? Não desejo flores depois de morto e, de qualquer forma, não haverá ninguém para levá-las.  Em vida, ainda receberia flores e gracejos. E mesmo sabendo que não foi para mim que Carlos escreveu A um ausente, considero, em minha fantasia, para mim e para  os meus pet's, que já me esperam no além túmulo.  Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada? - C.D.A.

Entre sujeiras e miolos V

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Arte: Édouard Manet, sentado, segurando o chapéu. Degas. Metmuseum.  Disseram que se eu continuar assim vou acabar depressivo - isso se eu já não estiver. Dois centímetros de lixo no chão Crostas de sujeiras em todas as superfícies. Comida apodrecendo na bancada americana, na pia, no chão, no lixo.  Eu sei que para mim é o fim da linha. É o mesmo fim que eu previra para o pós-universidade.  O que existe é o pós-decepções; o pós-pré-pandemia; o pós-verdade.  Nada mais vale a pena. E não há nada pelo que ser dito. Não há nada. 

Entre sujeiras e miolos IV

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Eu  vinha caminhando pela João Bebe Água, sentindo o leve frescor da noite - depois de um dia escaldante - e pensando na imbecilidade de uma vida presa ao circulo vicioso de trabalhar apenas para pagar contas e tentar sair bem em fotos, quando fui, como sempre, tomado de assalto pelo vazio desse estilo de vida.  E vinha ruminando os fracassos da vida e os acertados nãos , incompreensíveis pela multidão, quando me deparo com um homem pedalando tranquilamente em uma bicicleta tandem.  Em uma bicicleta tandem. A primeira cena que me veio à memória foi quando a Marge (The Simpsons, ep. 361) tentou andar em uma e fracassou em todas as vezes porque não tinha com quem dividir o veículo. Cenas tristes - deprimentes até.  Não era um homem amarelo e ele até que se saiu bem, seguindo seu caminho solitário.  Até quando? A vida é dura não por ser trabalhosa. É dura e embrutecida por processos que envolvem pessoas e suas mesquinharias.  Eu, não muito diferente do homem, ...

Entre sujeiras e miolos III

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Foto: Cobertura Frontal. Metmuseum.   Há alguns anos, enquanto eu tinha algo mais interessante para fazer e com quem fazer, L.F. maratonava Two and a half Men. Particularmente eu achava um tanto exageradas as gargalhadas e sua imagem assistindo e se acabando em risos enquanto eu (cara  de riso e safado enquanto relembro)...bem, não importa. Agora eu estou maratonando a mesma série e nem sempre achando graça. Na verdade, Rose e a Evelyn Harper é o que torna as ironias e as situações engraçadas; e elas tornam tudo divertido. Não sei se L.F. concorda, muitos anos depois e com inúmeras responsabilidades nas costas. Eu, por outro lado, apesar de ter tido a tendência a ter responsabilidades semelhantes, não estreguei a minha vida e a de outrem. A pandemia parece estar no fim e nesse purgatório ao azeite extra virgem fervente o que sobra nem são lembranças aleatórios e não provocadas, mas a prospecção de uma nova realidade - aos que sobreviverem ao vírus, à política e à crise ec...

Entre sujeiras e miolos II

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Foto: arquivo pessoal.  Outro dia, de certa forma chuvoso, fui à padaria na outra rua e, no meio do caminho, reencontrei um filhote felino de poucas semanas de vida. A visão do pobre animal e a minha necessidade de um bichano para amedrontar um catito que tem desesperadamente buscado comida aqui em casa desde que a minha vizinha se mudou.  Entre adotar outro gato e não o fazer, sendo mais um humano cruel e insensível, eu fico no meio termo - igual certos artistas que conhecemos diante da política e da miséria social que está reafirmando o brasileiro como rato de esgoto compulsório.  Acabou que ainda não adotei. Não se onde ele anda, provavelmente na mesma esquina sendo alimentado pela vizinha da esquina, no fim da rua.  Tirando o meu gato (que a minha ex adúltera, mentirosa e perigosamente tóxica usurpou e jogou ao deus-dará), ainda redirecionei mais dois filhotes felinos para a adoção. Um, aparentemente continua sendo bem cuidado - enquanto estava esperando o novo l...

Entre sujeiras e miolos I

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Todos os dias desse ano dramático eu tenho descoberto e vivido várias experiências, nem sempre danosas, mas sempre desconcertantes.  Ontem descobri que ela foi embora e talvez nunca mais volte - a passagem só de ida foi o indicativo.  Antes de ontem notei que há uma diferença entre o meu controle emocional e a minha tolerância a ofensas - ser profissional vai muito além de ficar omisso ou calado diante de abusos. Se passei na prova? Não sei. Sei apenas que não me trai, como tanta gente ordinária faz.  Diante das mais diversas experiências - e nem estou contando as sexuais - eu verifico a minha conta, vou à delicatessen (que no Brasil as pessoas acham chique), compro uma ou duas cervejas de marcas que não costumo consumir, coloco um show para a assistir e penso na vida, nas contas, na sujeira da casa, nas decepções e na minha baixa tolerância à estupidez.  E a vida segue, do que jeito que dá.  Foto: arquivo pessoal

Quando fui à padaria

Fui à padaria da outra rua, quase no mesmo velho horário. Vi as mesmas pessoas que sequer imaginam as reviravoltas da minha vida. Vi as ruas ainda sendo calçadas e os mesmos desocupados na esquina.  Eu fui à padaria sozinho, nesse novo recomeço, nessa nova realidade. Vi, expostos na vitrine, a torta que eu sempre como, pastéis e coxinhas. Ah, coxinhas!  Ela amava aquelas coxinhas! Sua paixão por elas beirava a indecência e era divertido de se ver. Sua vontade e sua voracidade não tinha limites. Não tinha como não lembrar. Dessa vez, como será daqui para frente, eu deixei a coxinha lá, à espera de outra amante loucamente apaixonada. Levei minha torta e minha coca-cola.  Eu fui sozinho e lembrei memórias de um passado que ainda não se definiu bem. Fui por sua obra. Por sua obra... Agora estou sentado à porta, ensimesmado e indagando-me: será que as pragas do sangue finalmente me alcançaram?

Preços, vizinhos e pandemia

Sexta-feira.  Dia de Oxalá. E mais uma semana que vai terminando. A pandemia segue seu ritmo darwiniano. E eu sigo meu ritmo, seja lá qual for. Meus vizinhos deram uma parada nas comemorações rotineiras, em que nada em específico se comemora. Eu vi, sem querer, nos abusos de propagandas das redes sociais, o preço da cerveja. Meu Deus, onde vamos parar com esses preços?  E, justamente por tão salgados preços, é que não entendo como tantas pessoas, como meus vizinhos, bebem tanto e quase todo dia. Entre bebidas e sabonetes caros e de marcas não goumertizadas, eu sigo, não sei para onde. O que sei é que hoje é sexta-feira. Dia de abraçar e agradecer, como bem interpreta Maria Bethânia naquele show belíssimo .

Máscaras apavoradas

Minhas únicas duas máscaras, que são descartáveis, estão penduradas em um prego na parede como se fossem troféus de uma macabra competição. Sem poder sair e sem dinheiro para ter que sair, os dias vão passando rápido, como se estivessem com pressa. Não sei qual o destino, mas que quando vejo já é noite e o sono bate à porta da minha mente. Lá fora parece que o mundo continua muito igual ao que era antes, acrescido apenas da sutil diferença de máscaras em rostos apavorados pelo inimigo - invisível a olho nu. Aqui dentro há tentativas de sobrevivência. E só.  Até quando? Creio que nem Deus sabe.

O milagre sou eu

Não há milagres a procurar. Não há nada a procurar porque o que temos é suficiente para muita preocupação e muito abuso.  Falam sobre fenômenos celestes e declarações de ilustres figuras que em absolutamente nada pode mudar minha vida e dão a fatos e desacertos supérfluos a competência de ditar o meu amanhã. O meu amanhã! Amanhã eu não sei se estarei vivo, se a comida chegará à minha bancada americana ou se o banco, finalmente , liberará meu dinheiro. Amanhã nem a Deus pertence, quanto mais a mim. Eu sei do hoje, que já passou, e do agora. E nem é muita coisa isso o que eu sei.  O milagre sou eu - que vou seguindo nessas tortuosidades da vida. E esse milagre, eu, estou achado. O que eu quero agora é me desachar.

Eu

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Foto: Rosto atribuído a Ptolomeu II Filadelfo ou um contemporâneo. The Met.  Eu tenho em mim o fim e o começo Sou o sábado de Aleluia e a terça de Carnaval Eu sou o amor que não se diz E o ódio do amor ferido Eu sou a canção que nunca escrevi E as palavras que os outros disseram Eu sou o tédio de um domingo E o motivo do contentamento  Eu sou o brilho no olhar E o ronronado do felino  Eu sou o filme que ainda não estreou E os aplausos que nunca cessam Eu sou o início  E brisas leves dançam ao nosso redor Eu sou o fim E as lágrimas que salteiam Eu sou o meio Que nunca acaba.

Lodaçal da madrugada

A madrugada começou e o meu banheiro ainda fede. Bactérias se amontoam e criam cores por todos os lados. O mofo cresce sem controle e minha única opção é fechar a porta. Da rua vem um som repetitivo, triste por letras e silêncios. E, se a cultura popular estiver certa, alguém fala de mim e não é coisa boa. Minha orelha esquerda lateja e esquenta. Começou repentinamente. Perguntas sem respostas. Perguntas retóricas. Perguntas incômodas. E eu sei das respostas e não suporto nenhuma delas. Não suporto o tempo. E tolero-me. A madrugada vai seguindo, entre chuvas e mosquitos, entre cervejas e barrigas que roncam. Só eu que pareço não conseguir sair do lodaçal.

Carta a um Ausente III

Oi,  acho que você nem anda lendo as massivas que envio. E espero que esteja bem de verdade e  não apenas usando expressões banais para esconder a realidade. Viva sei que está, amém. Do lado de cá as notícias são tristes e vergonhosas. Você não acreditaria a que níveis permiti que me rebaixassem. Estou tentando me reerguer. Estou tentando confiar em que tanto me fez mal, hediondamente, e sempre concluo que é quase impossível - sempre descubro novos conluios e isso é muito triste, por muitas razões. Não sei como anda essa sua adotada terra. Parece que ela engoliu você e aos seus e se recusa a regurgitá-los. Eu, por outro lado, ando sobre várias terras e em nenhuma encontro morada, um lugar de paz. Quem sabe a Covid-19, um dia, traga toda a paz que  eu mereço. Acabei de limpar a casa e uma preguiça me bateu. Aqui não é lugar para você, sempre achei que certos lugares, dadas condições, não devem ser vistas por você. Por isso mesmo não a convido.  Quem sabe eu visite voc...

Por entre paredes e telhados

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É noite e estou sentado à porta.  Não há alimentos em casa. Também não há móveis. Há apenas eu, minhas próprias promessas, minhas frágeis resoluções, meu mundo em tempos de pandemia. Vejo, entre paredes sem reboco e tetos irregulares, nuvens que se aglomeram e que depois desistem. Ah, nuvens, quantas desistências eu deveria ter cometido e, por razões que hoje ignoro,  não cometi. Nos recantos da escada estão mentiras se amontoando com a poeira que vem da rua. Nas paredes desta casa há manchas que não sairão facilmente e que foram tão perversamente postas. Em mim, vendo tudo isso, não consigo aceitar o esquecimento de tantos eventos infelizes apenas para deixar meu algoz feliz, sem a vergonha e sem o peso dos seus próprios pecados. É noite. E eu ainda vagueio sem rumo.

O branco da sexta-feira

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Ilustração: @thiagomartinni / reprodução instagram Hoje é sexta-feira, dia de vestir branco. Dia de agradecer ao Senhor do Pano Branco e buscar a paz interior que o mundo tenta me tirar. Dia de olhar para feridas e machucados e pedir a misericórdia de quem tanto sabe sobre as voltas do mundo e da vida.  Hoje eu não vesti branco porque branco eu não tenho.  Vesti-me de agradecimentos.  Depois de não terem remorso por traições, egoísmos e falsidades diversas; depois de me humilharem publica e repetidamente; depois de me rebaixarem aos níveis mais abjetos que se pode atingir, eu só posso agradecer por não me abandonar como os falsos amores, as falsas amizades e os falsos amigos. Agradecer por me permitir pensar e refletir em meio às mais diversas situações constrangedoras. Agradecer por me deixar ser quem eu quero ser, apesar de tudo e de todos. .Hoje é sexta-feira e eu visto o branco sob a pele. E eu sei que a minha pele será limpa e curada. "Oxalá, meu Pai Tem ...

Pulsando

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É, Arnaldo, o pulso ainda pulsa. Por insistência e por uma involuntariedade que excede qualquer perspectiva. Está aí, pulsando. Só as palavras que estão escassas.  Do muito que foi dito. Do pouco que foi compreendido. Do silêncio envolvido. Das meias verdades. Das verdades completas amenizadas. Da vida. O pulso está aí, apesar de tudo. Não há mais o que fazer e nem quem ouvir porque a compreensão não está em lugar nenhum.  E nenhum aneurisma à vista. Foto: Rafael Rodrigo Marajá/Arquivo Pessoal

Ser ou estar

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Enquanto sou brinquedo está tudo bem. Enquanto sou o pano que seca e limpa a sujeira está tudo bem. Enquanto sou a desculpa e a justificativa para tudo e qualquer ato vil está tudo bem. Porque há pessoas que só nos querem para humilhar e maltratar e quando não o podem ficam tristes, às vezes até desesperadas. E entender essa dinâmica é uma faceta que precisa ser desenvolvida. E uma relação assim não muda, não há como mudar - você sempre vai precisar estar mal para que outro esteja bem. E isso é parte da vida. Eu já escrevi sobre amores de etiqueta, ilusões e desilusões. Escrevi sobre amores passageiros e pessoas que nada merecem. Escrevi sobre tudo isso e tudo tem sentido.  Escrevi sobre traições e como a pessoa traída é, na verdade, a menos enganada. Escrevi sobre mentiras e como eles destroem tudo. Escrevi sobre cada faceta dos relacionamentos de conveniência. Entretanto, nesta manhã, eu não queria escrever sobre isso. Ler isso. Ser ou estar, como o verbo inglês que pouco muda. N...

Pedras nos bolsos

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Foto: Hiilili Kokko (figura de Katsina). The Met. .. Fez pouco sol e a chuva pegou os transeuntes de surpresa. Eu estava em casa, andando para lá e para cá, com pesos nos bolsos e me afogando em minha realidade. Apenas sufocando com ar. As nuvens, de repente, pesaram ainda mais e a luz diminuiu. Fora ficou igual a dentro. E nenhuma música foi ouvida. E tive que remexer em recentes  machucados, olhar para sangramentos e inflamações e tratar, não por cuidado, mas por necessidade social. Ninguém vai entender. Nunca vai entender. Nem mesmo quando, um dia qualquer, eu tiver ido para além-disso-aqui. Não há palavras. Não há momentos. Não há estados. Só o estar com o nariz na tensão superficial que é esses dias. E o que eu quero não importa, raios e trovões serão um alívio e um dilúvio será menos que o esperado.  Quantas vezes o mundo acabou desde 2012?

Irrepresável

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Alguns enfrentam enxurradas que devastam suas casas, seus pertences, suas rotinas pobres e miseráveis. Outros enfrentam enxurradas de trabalhos, problemas e superficialidade. E alguns enfrentam enxurradas de si mesmo. Qual seria a pior de todas? Todas. Para quem luta e segue o marketing capitalista, perder os eletrodomésticos é uma dor que só se supera com outras compras. Para quem faz da própria existência apenas trabalhos não pode esperar mais que desafios superficiais, que viciam. E enfrentar a si mesmo é só uma questão de necessidade. Todas juntas, essas enxurradas devastam qualquer um. Mas para quem não tem bens materiais e sequer trabalho, a árdua tarefa de autorregeneração é intensa e exclusiva. De repente até dolorosa. A água nunca para. Nós nunca podemos parar. Mas não há botes, salva-vidas, farol. Às vezes aparece alguém que nos ajuda a encontrar uma ilha flutuante e que nos deixa na tranquilidade de que tudo poderá ficar bem.  Então, como humanos e repetidores dos itans ...

Crônica de uma vida insuficiente XX

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Domingo de Sol. O Brasil é notícia no 20minutos.es por causa da média móvel de mortos por covid-19. Os governos estadual e municipal reimprimem medidas de contenção da população com o objetivo de controlar os casos de mortes e de infectados por essa que é uma peste negra moderna. Na rua, aqui na minha porta, música alta comemora o calor, a cerveja, a folga, o feriado que se aproxima. Se há isolamento? O meu. Só o meu. Sempre o meu. Ainda deu tempo de comprar uma coca-cola e alguém baixou um pouco a música. O calor está de matar e faz com que o cadáver do homem assassinado ontem na praça (traficante e usuário filho de um policial da outra rua) se decomponha na velocidade escapista das moscas. Um domingo, apenas.

Depois da chuva

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As chuvas de maio preparam o caminho para o inverno e parece que ficamos mais propensos a sentimentos de proximidade com o outro. O frio parece uma liga que nos conecta a padrões de convivência. E então, quando a chuva tranca-nos em casa, parece que não há como suportar tantos quereres. E estar só é apenas o prelúdio de uma situação que não termina. O inverno chega. Nosso íntimo clama e lamenta. E dia após dia somos carne e ossos envoltos em frio, água e sentimentos. Palavras perdem o sentido à medida que o inverno vai passando. E quem sobrevive a tamanha pressão poderá dormir no doce clima primaveril. Como, no entanto, sobreviver para viver tal momento? Foto: Rafael Rodrigo Marajá/Arquivo Pessoal.

Pobrices de quarentena

A quarentena entre os pobres do Rosa Elze parece as festas de fim de ano, só que em Março e sem muita água celeste para encerrar o verão. Os meninos pobres ainda soltam pipas na rua e as meninas saem à noite para brincar - uns seguram objetos cilíndricos que os ligam a pipas, mesmo à noite, outras correm para colocar objetos igualmente cilíndricos na boca. Os pais? bêbados que dormitam o dia todo e quando a noite finalmente cai correm para dentro de casa para ou produzir outro pequeno demônio ou assistir às reprises de novelas. A rua fica aí, cheia de gente esperando que a pandemia seja trazida na carona dos traficantes. Uma varredura de doença que pretende acabar com os pobres, velhos e novos diabos, parece nunca chegar nas ruas mais periféricas dessa que, dizem, é a cidade mãe de Sergipe. Poeira, drogas, baixezas de todos os tipos  - nada de novo durante essa quarentena que parece estar longe do fim. ___________ Acesse e leia: Anjo da Guarda  (Amazon) ...

Um minuto no limiar

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Um minuto para a meia noite. Um minuto para o hoje ser ontem. E nada mais importar. A luz que entra vem de fora e o ar frio rodopia ao meu redor. Baixinho, quase um sussurro, a música evoca pensamentos e eu vou seguindo, com os olhos na escuridão, um amanhã que ameaça ser hoje. Não espero palavras. Não espero sentimentos. Não espero ninguém. Só que o minuto acabe e eu possa respirar aliviado por mais um dia que se foi. O que será de mim amanhã?  O que foi de mim ontem? O que sou agora? Começou a chover e o minuto passou.  O agora mudou e eu continuo ouvindo a música, no escuro, olhando para o nada. Nada. Palavra estranha que diz muito e deixa-nos na orfandade de uma definição. Talvez sejamos órfãos de nosso eu, que se perdeu por aí. E como Oliver precisamos apenas seguir em frente, apesar das maldades do mundo e das inocências internas. E, como Oliver, precisamos esperar um melhor amanhã sem que paremos no meio do caminho. Um caminho cheio de pedras, não só uma, como disse Car...

O todo ou nada

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A vida, uma desordem que encontra repouso no caos, eu vou colocando em pontos, vírgulas e reticências esperando que mais tarde tudo se resolva. Que o tempo, que a tudo cura, lamba meu corpo e me resfrie do calor da fornalha. E eu estava colocando todas as pontuações necessárias quando nostalgias e saudades me assaltaram, levando minha frágil paz. De momento, assustado, quase me desesperei. Refleti. Armei estratagemas. Fui buscar o que era meu. No meio do caminho, Simone começou a cantar Migalhas e então eu parei. Tão linda, tão profunda e tão real que parecia que o compositor tinha escrito cada verso em minha homenagem e que Simone cantava para mim. A cada segundo eu retrocedia à minha frágil paz e ao momento em que de mim roubaram. E pude dizer, junto com a canção, que eu não quero e nem preciso de migalhas de um amor egoísta. Que a pessoa, incapaz de mudar e de compreender o que realmente significa viver um amor, seja feliz e guarde as migalhas desse amor tóxico, embora promotor de b...

Dois céus

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O frio trouxe a chuva. Ou foi o contrário, não lembro. Ao meu redor há espaços, não vazios.  E sobre mim há uma fina capa que costumamos chamar de vida. E com ela sou capaz de ouvir vozes no andar de baixo. A água para o café está sendo aquecida e uma boa noite de sono passou.  Por aí, nesse mundão, há palavras venenosas que tentam me encontrar, expressões injustas que tentam me alcançar. E eu me recuso a aceitá-las, encontrá-las. Eu gosto dessa chuva toda que inunda o ar de expectativas e alaga tantas ruas. Eu gosto de ser pego pelas gotas na volta da praia. E de molhar-me depois de um banho intenso de chuva. Há quem diga que não me entende e que me compreender é difícil, mesmo quando tudo é tão claro quanto um dia de sol, porque por dentro o céu é quase sempre limpo e de sol a pino e deve ser por isso que gosto tanto das nuvens de chumbo do céu aqui fora. O cotidiano no andar de baixo começou e é bom que eu comece o meu logo. Foto: Rafael Rodrigo Marajá/Arquivo Pessoal. ...

De dentro para fora

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As minhas dores são poucas e a quantidade desconheço. E nem quero saber seus abismos, meus buracos negros, para não me remoer. As minhas dores são feitas de todos e de muitos e a digestão de cada uma delas ocorre de uma vez.  De dose única dilacero-me. Rasgo-me todo.  E é bom.  Passada a dor, o sofrimento ensina a quem se dispõe a aprender e rompe com todo querer e maldizer.  As minhas dores são visíveis e as minhas cicatrizes são densas.  E ficam, como prova, de uma vida que passa. Viver parece ser isso, rasgar-se e curar-se, de dentro para fora, dos lados para dentro. Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Arquivo Pessoal.

Por onde fantasmo

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Sentado, sentindo a brisa fria de uma chuva que se aproxima e pensando. Pensamentos que se desdobram para justificar e desmitificar o passado e o presente, em uma vã tentativa de não cair em armadilhas.  Em paredes decoradas e esperas diversas, eu vejo o tempo. Ainda ouço sorrisos, olhares e dias. Vejo dias que correram, pessoas que passaram, imagens que foram se perdendo ao longo do caminho, entre digestões sentimentais e rancores que envenenaram a partes lindas da vida. Eu sei que tudo passa e que pedaços de vida imortalizados cobram seu preço, que às vezes é doce e às vezes é muito amargo. E sei que tudo passa para que possamos valorizar o hoje, o amanhã e passado. Eu sei que estou andando por ali. Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Arquivo Pessoal.