Postagens

Mostrando postagens de 2023

Sob o olhar invasivo do tempo

 Um resto de coca-cola em uma xícara branca, um sanduíche frio ainda na embalagem, um ventilador barulhento a roda de um lado a outro, músicas ao fundo.  Sou eu em um vórtice de um cansaço enquadrado em limites impostos sobre argumentos dispensáveis, refutáveis, incoerentes. O chão, branco, está limpo, ao menos.  Lá fora, mais ventilado que cá dentro, há rumores de uma vida pausada e nunca pensada, jamais observada de lado, como os gatos fazem quando estão curiosos.  Ouço Chico Buarque e o tempo parece pular pela janela meio aberta deixando uma sujeira sutil na parede onde se apoiou.  O tempo chegou. Hora de partir sob o olhar do tempo. 

A maldição do crente

 Em uma conversa via aplicativos de mensagens instantâneas eu disse De todas as coisas pra se ter em casa, o crente é a pior delas A fome, a peste, a pobreza, as maledicências, o mau gosto, a breguice, a ignorância, as doenças mentais, as brigas, os relacionamentos falidos, os suicídios... tudo isso e mais um pouco são unidos pelo laço da palavra de um deus ficcional e encarnados na figura de um crente. Sempre que ficam com bateria baixa eles vão às suas portas comerciais de preferência, enchem-se de uma palavra nefasta e saem às ruas envergonhando a todos com suas aparências deprimentes e suas palavras vãs oriundas de uma interpretação torta daquele livro ensebado que carregam.  Não cu que não reparem. Não há embocetamento que não estejam no meio comentando.  E nada há o que fazer, por enquanto, do que tentar conscientizar as novas gerações do fracasso que esses crentes representam e da ameaça latente que efetivam sempre que podem.  A casa em que habita um crente ne...

Construto Pessoal

 Quando paramos e todas as necessidades mais básicas estão minimamente satisfeitas (ainda que por breve momento), o silêncio ocupa todos os espaços por dentro da nossa complicada mente e em todos os vértices do lugar em que nos encontramos. Amores são revisitados e passamos em revista aos nossos desejos e frustrações. Talvez por isso odiemos terrivelmente quem nos mostra nossas fragilidades e medos. No fundo, somos o que somos. Nem mais e nem menos. Somos um construto de tudo o que escolhemos fazer, ver, ouvir, dizer, ponderar, projetar.  E então, resolvida a questão do que somos, nada mais resta a problematizar além daquilo o que procuramos definir como o Eu-que-me-habita.   Dessa maneira, quando olhamos bem direitinho para o que fazemos, percebemos que buscamos demais por riqueza, concreta ou virtual, que nunca nos chega simplesmente porque não estamos dentro da casta que a detém, por natureza, nascimento ou privilégio. Procuramos fora o que não nos pertence e apri...

A misoginia - uma superfície

 A misoginia tem raízes cotidianas. Insinua-se em pequenos desentendimentos no trânsito, no trabalho doméstico e na formação educacional. Vai tomando forma com discussões acaloradas e sedimenta-se no comportamento geral de ambos os lados. Sempre esteve presente e continuará sob novas formas e novas roupagens até que se entenda que a questão do ódio sedimentado não é uma questão de gênero, mas da espécie. Questão de dominação, o homem busca seu domínio sobre homens, mulheres, crianças. O branco busca manter seu domínio sobre o preto, o branco, o amarelo, o cafuço e os demais. O hétero busca manter sua hegemonia sobre o gay, o bissexual, o transsexual, o travesti e as demais siglas. É sobre poder. Nunca foi sobre representatividade. Sob esse manto, há questões como a misoginia, que vê a superfície e jamais atinge a profundidade, seja por incompetência estrutural dos debatedores, seja pelo plano político que se desenrola no governo dos países a partir das comunidades. A utopia de um m...

Os diabos pobres

 Durante a semana, no horário comercial, esses pobres diabos são as ferramentas que movimenta a roda da economia e pouco importa seus desejos e aspirações. À noite, depois que o tempo deixa de ser contado mesquinhamente, torna-se público para novelas televisionadas mal escritas, telejornais e polêmicas fabricadas de famosos de vida perfeita.  Aos domingos, esses pobres diabos são a plateia de pastores e padres, que em cada esquina abre uma sucursal da verdade absoluta. De si, dos seus gostos, só umas horas, poucas, rareadas, entre a tarde do domingo e o começo da manhã da segunda-feira. Nada além disso. Nada lhes pertence. Nem mesmo sua vida ou o que, com os contados centavos, conseguem comprar em infindáveis parcelas. O exército de pobres diabos é exatamente isso: pobres e diabos sujos e esfarrapados, que quando não estão vestidos com um uniforme de mal gosto estão vestidos de terno mal cortado ou vestido à brega.

O vivente da barra da manhã

 Ultimamente o sol nasce entre dizeres e brisas à rua. Às vezes com a presença de desvalidos sob marquises e, em outras vezes, com o caminhar lento de felinos perscrutando os resíduos da noite comercial anterior. Hoje mesmo, quando a barra da manhã já apresentava os sinais de um colorido primaveril e escorpiano, uma criatura mal-humorada rompeu pela rua, chutando o lixo, xingando os animais vagabundos, omitindo-se a saudações. Uma criatura que deve ter se revoltado com a cena matinal, nada explícita, menos ainda implícita. Talvez a revolta seja por uma vida inteira de trabalhos humilhantes e de um cotidiano mecânico, quadrado, ditado pelas convenções sociais e religiosas. Faltando-lhe carnes sobre os ossos, sobrando-lhe amargor, quem nunca foi, um dia, como tal vivente? Um dia qualquer. Uma manhã nascente não costumeira.  Sem sexo, sem explícitos, faltando implícitos - um dia na viada vida periférica que se acomoda entre quereres e transtornos.

Automediocrização humana

  É possível entender o medo das pessoas em relação à Inteligência Artificial. Capaz de criar imagens, escrever textos científicos referenciados, e escrever as citações na ordem em que surgem no texto, a Inteligência Artificial, já presentem em diversos sites tem se tornado uma ferramenta e uma ameaça àqueles que veem na facilidade das Máquinas um caminho sem esforço e sem dores de parto dos trabalhos, hoje humanos. A quem pertence os direitos autorais? Até onde vai a "criatividade" da Máquina? Até quando ser humano será necessário? Talvez a questão não seja onde o homem terá lugar. Mas até que ponto este se deixará mediocrizar pela Inteligência Artificial. Para exemplificar o que, para alguns, ainda não se situou nessa discussão, segue abaixo uma crônica escrita pela Inteligência Artificial. Julgue-a. "Era uma manhã ensolarada em São Cristóvão, uma pequena e charmosa cidade no estado de Sergipe. O céu azul contrastava com as casas coloridas e históricas da região, crian...

O assunto e o motivo

 É sempre sobre domínio e poder.  Não é sobre a imortalidade da alma, um paraíso - aquele lugar idealizado e idolatrado. Não é sobre um possível amor ao próximo - se tal amor e tal próximo sempre são selecionados, direcionados, excludentes. Não é sobre uma paz com animais selvagens e ferozes - se é o homem o mais feroz e atroz dos animais. Não é sobre continuar a humanidade em famílias com gêneros diferentes e crianças saudáveis - se é essa concepção que abandona bastardos à própria sorte em rodovias e esquinas diversas.  Não é sobre ilusões que remetem a um falso deus, morto em toda porta comercial.  É sobre o poder político e econômico. É sobre dominar o outro até mesmo onde lhe é mais íntimo, pessoal e particular. É sobre retirar a humanidade de infelizes vítimas de estruturas sociais degradantes e crueis.  E nada além disso. 

Além da fronteira do amor romântico

 Há eventualidades que o amor romântico ocidentalizado jamais alcançará. Questões básicas de não colonização do outro que foge completamente aos axiomas de uma sociedade pautada na posse, na propriedade e na dominação do outro e de suas preferências.  Dono de si, o outro dispõe de vontade que, às vezes, é soterrada em escombros de deveres, afazeres, aparências e quereres alheios. Extirpado de sua verdadeira natureza, esse outro, não raro e por períodos consideráveis de tempo, acaba esquecendo quem é e qual seu papel no contexto social no qual está inserido. O amor romântico ocidentalizado, onde o sexo tem regras rígidas e paulatinamente ensinado indiretamente em escolas e hipocritamente renegado em espaços pseudo religiosos, é uma flâmula hasteada em pleno mar seco, onde a vida é incapaz de prosperar.  Em certas madrugadas, onde nem mesmo o homem consegue inventar um deus onipresente e mítico e as fronteiras desse amor romântico acabam, somente as eventualidades de uma vi...

Da inanição de afeto

Imagem
Arte: Stole. first quarter 19th century. Met.   Não é que perdemos o jeito de dar, receber e cultivar afeto. Simplesmente não sabemos mais - se é que algum dia, de fato, tivemos a chance de estar em estado de afeto. Antes teve aquela época em que pessoas muito violentadas, física e/ou psicologicamente, criam em um pseudo afeto por meio das redes sociais. Depois, ou conjuntamente, passamos a publicar certas demonstrações de afeto. Agora, contaminados pela falsa ilusão promovida pelas redes sociais, estamos armados contra o que chamamos de afeto.  Ao menor sinal, sumimos. À menor gentileza ou cortesia, desafiamos a um sanguinário duelo quem ousa ser gentil ou cortês na vida real - não dá tempo para fotografar e postar.  O afeto tornou-se um dos demônios católicos que assedia sem provocação. E seguimos um caminho pedregoso e espinhento que a nada e a ninguém protege.  Estamos áridos, morrendo por dentro, sem sangramentos, sem feridas expostas, sem marcas visív...

Imprecisões naturais da vida

 Comecei o dia comendo um sonho. Agora dos outros porque não tenho mais sonhos. Os meus ficaram presos nos cactos das áridas caminhadas que fui obrigado a fazer nos últimos anos - um dia desses eu me descobri sem prazer em pequenas rotinas que antes eram tão satisfatórias; o sexo tornou-se tão banal (será por causa da facilidade e da oferta?); a comida restringiu-se ao seu papel de fonte de energia... Na minha taça, como ontem, antes das sete horas da manhã, coca-cola.  Na minha cabeça, Raul Seixas cantando. Na minha mão, uma dor que surgiu depois de um sexo em má posição de semanas atrás.  Hoje eu não tenho lugar. Não tenho planos. Não tenho mais pressa.  Hoje eu estou apenas esperando o milagre das imprecisões naturais da vida.

A suavidade da chuva outonal

 Abro a porta e vejo a linda luz de início da manhã cintilar nas gotas de chuva outonal. Não está frio e tomo uma coca-cola (porque a vida é breve e pobre morre cedo de qualquer coisa mesmo). Inspirado, coloco no reprodutor Chove Chuva na versão do Biquíni Cavadão. Os problemas solucionáveis e pueris estão embaixo da pia, a espreitar-me, rancorosos porque resolvi não lhes dar atenção.  A chuva está sensível, meiga, como Oyá em tempos de paz.  Eu estou acordado desde a madrugada, sem percepções entorpecidas, sem sonhos insolentes, sem sono naturalmente esperado. Todos os que não precisam trabalhar estão em casa, abrigados, agasalhados. Meu vizinho, mão de obra barata da construção civil, saiu cedo quando a chuva era uma pausa em mais uma manhã.  Daqui a pouco os garis irão despontar na esquina recolhendo os resíduos sólidos urbanos de uma centena de gente que sequer valoriza o fato de a rua ser limpa sob chuva em uma manhã como essa.  Essa chuva me lembra Ela, Oy...

Visitantes

 É engraçado como as pessoas gostam de visitar. O visitante não tem responsabilidade sobre a as deficiências estruturais da casa ou rua alheia. Não lhe interessa para onde vai o seu lixo e os mendigos e animais de rua possuem até uma quê de exótico. O visitante pode gastar sem modéstia porque convenhamos, são apenas alguns dias ou horas. Não vê a favela, o pobre, o transporte precário, as crianças descamisadas brincando na rua por falta de opção e até mesmo alguns disparos de arma de fogo é só um requinte auditivo que floreará sua história quando estiver de volta à sua origem. O visitante é, ao mesmo tempo, um colonizador e um colono, brincando de dono do capital, de político e de nativo. E sob a sua influência as comunidades são modificadas, a cultura depravada, o povo degredado. Nada e nem ninguém lhe importa.  Os momentos que vive são mágicos. 

No vale de idiotismo

 Vamos crescendo e entre chibatadas "educadoras", chacotas "inocentes" e sonhos capitalizados acabamos tornando-nos insensíveis e avaliadores do outro com certa malícia necessária, embora muitos não consigam escapar das armadilhas sociais.  É assim que se reconhece o cretinismo senil dos evangélicos, aquelas mulheres que usam o útero como meio de vida por meio da geração de criaturas infelizes e dos homens que acham na toxicidade de comparações penianas disfarçadas de certos "sucesso".  E como escapar? Nem sempre dá. Às vezes só dá para escapar sendo bem cretino e em outras sendo patriarcalmente preconceituoso.  É isso ou se render às imbecilidades de um cotidiano deplorável.  Ali na frente mesmo, a múmia evangélica crê que se falar o nome de uma certa deidade ficcional poderá ser salva da lama do pós-vida que a espera. Confrontada com essa realidade, fica ofendida - mais com o fato de que vai servir como adubo do que com a negação da falsa deidade.  Na ou...

Item de massa necessitada

 Somos condicionados a desprezar o descanso em prol de uma rotina atarefada e desnecessária. Sem questionar o que, efetivamente, precisamos e sem nos entender no contexto social, sempre pessoal e particular, vamos consumindo filmes por osmose, música ditada pelo "gosto popular", itens pessoais em alta na moda do momento. Acabamos nos tornando apenas mais um integrante no vasto mundo da produção em massa cuja única particularidade é escolher um tom de cinza.  É madrugada e a maioria dorme com o peso de ter que acordar bem cedo, daqui a pouco, pegar algum alimento e partir para o ponto de ônibus ou metrô para ir a empregos que pagam mal, são psicologicamente agressivos e que não satisfazem os desejos mais básicos, segundo a pirâmide de Maslow. Alguns, principalmente os chefes, hão de dizer que é melhor do que nada. Será? E é melhor para quem? Pagamos um preço muito alto pela rebeldia de viver do modo que se quer e precisa. E um preço ainda mais alto por sobreviver do modo que o...

O outono de Áries

 O outono começou lavando a rua, os telhados, os pés cansados de tantos andarilhos-em-circulo. A água revelou goteiras nunca antes vistas, a necessidade de mais roupas de cama e preocupações diferentes.  O outono anda escondendo Áries, sentida por todos, tendo eles conhecimento disso ou não. Mais cedo, ali na praça, uma colisão entre dois veículos foi a atração rueira. Um pouco antes e em direções opostas, duas outras colisões chamaram a atenção dos transeuntes.  Um pisciano reclama da má sorte, um escorpiano anda arisco, um ariano anda...bem, como sempre anda um ariano. Agora ouço a chuva e não sei se pagaram um boleto necessário e dúvidas persistem sobre outras ordens de pagamentos. Um dia de cada vez, é o que nos pedem.  Pode ser que nesse outono tenhamos frutas mais baratas e amores mais populares - é essa a esperança do pós-pandemia. O que se pode saber, com precisão, é que Belchior, nessas madrugadas pensantes e tão chuvosas, é ainda mais fundamental.

Crônica de uma espera

 Ontem o céu rugiu. Parecia um leão que não sabia se dormitava ou acordava de vez para rondar o território da caça. Nuvens de chumbo precipitavam-se em momentos inesperados. Para além disso, nada. Nas cidades do interior ruas inteiras com feiras livres. Na capital, os shoppings. Na rodovia que faz esquina com a rua uma corrida anual se desenrolava.  Entre paredes nada disso importa - novos demônios subjugando antigos fantasmas, vergonhas diversas dentro dos bolsos, olhos cansados e boca cerrada pelo peso de uma vida errante. Entre as paredes ouve-se os pingos da chuva, o rugido do leão celeste, o silêncio na casa vizinha, a vida desgraçada que se leva por força das circunstâncias. Hoje o céu está limpo e vidas diferentes interagem entre si no outro lado da parede. Deste lado não há vida. Apenas uma espera que nunca acaba.  

Dias infernais de Herege

 Algumas doutrinas cristãs (e daí já é possível ter uma bela ficção) levantam a hipótese doutrinária de que podemos ter escolhido nossos pais, nosso país e as condições materiais nas quais nos encontraríamos depois de nascer. Se isso for verdade ou tiver algum traço desta, precisamos amaldiçoar a nossa péssima capacidade de escolha.  Há dias em que nos encontramos em tão desagradável situação que só pode ser descrita, brandamente, como um inferno na terra e nem nos piores dias de pensamentos mais tenebrosos dos filósofos mais hereges teria ocorrido uma narrativa de uma personagem em dia tão terrível. Às vezes o dia é mais de um. E situações mais adversas, dentro e fora do próprio controle, leva-nos ao melhor autocontrole possível, que é não só não perder o réu primário como não parecer uma pessoa enlouquecida "sem motivos". E, se nesses momentos, alguém mencionar que foi escolha - certamente o réu primário será perdido. No fim, palavras brandas são enervantes e o sossego é a ...

O cansaço de viver

 Um dia a gente vai perdendo o gosto pelas coisas. Em um mês de abril a gente vê que não gosta mais de desenho animado. Em maio a gente perde a paciência para essa coisa de dia das mães. Quando junho desponta no firmamento percebemos que não contemplar a lenha queimando é um alívio.  É assim que, percebendo ou não, vamos morrendo aos pouquinhos, com muitos graus de insensibilidade. Com a perda de pequenas alegrias que nos acalmavam a mente e arrefecia o aperreio dos dias. E parece que não há nada que possa mudar isso porque, em uma última instância, significa a perda da inocência também.  De repente, ou nem tanto, nos vemos lutando para pagar contas e sobreviver mais um dia. Reclamamos de trabalhos ruins e chefias tóxicas e, mesmo assim, arranjamos desculpas para manter a situação até o limite do tolerável. Amargamos a solidão a dois e continuamos tendo medo do estar só, um paradoxo que só nossa mente consegue processar. Vivemos como criaturas infames pedindo aos deuses u...

Clientes e emoções em diminuta remuneração

 Nada como o ser humano para estragar o dia de qualquer outro ser humano. Penso que aquele livro errou ao afirmar que, em certas situações, o homem é o sal da terra. Ou acertou para mais, salgando demais essa terra que já se encontra amarga. A mulher do vizinho relatou que é difícil trabalhar no varejo porque as colegas ficam conversando entre si e com outras pessoas pelas redes sociais e deixam os clientes abandonados e quando ela toma a iniciativa de atendê-los (cometendo o grave erro de desrespeitar a ordem de atendimento das vendedoras) é repreendida pela chefia imediatamente superior. Uma heresia tão grande não pode passar impune. JAMAIS! Gostaria de poder ter-lhe dito que nem todos os trabalhos são assim e que certamente ela vai encontrar um lugar onde poderá ser valorizada em toda a sua proatividade. E que as intrigas dos pequenos poderes não se perpetuam.  Gostaria muito, mas não pude porque não seria verdade e nem mesmo eu acreditaria nisso.   A mediocridade...

A irresponsabilidade humana in vivo

Imagem
Você vai ao mercado da esquina e enquanto passa as compras no caixa aparece um cachorro abandonado com cicatrizes por todo o corpo. Enquanto caminha pela rua encontra gatos abandonados que são alimentados pelos proprietários do petshop. Se aguçar um pouco a visão ainda verá filhotes por todos os lados. Os animais tidos domésticos são abandonados na mesma velocidade com que nos encantamos pelo mundo digital e suas facilidades. Amamos videos de gatos bebendo água acionando torneiras e odiamos, mais até, os gatos próximos que nos pedem alimento, abrigo e proteção. Apreciamos um cachorro de qualquer raça definida e detestamos o mestiço, que só encontra respaldo social de existência em postagens de redes sociais. Ao parar para ver o que nos incomoda no cotidiano é fácil perceber que é a nossa própria insensibilidade para a fatia de meio ambiente que ocupamos que torna nossa vida cheia, feia e depressiva. É o nosso descaso com o meio ambiente que inunda cidades, desmorona casas, ...

Golpes por escolha

Antes, em algum momento romantizado em que eu não perambulava sobre a face danificada da Terra, os golpes eram mais refinados. Talvez porque não havia essa hiperconectividade toda e os meios analógicos de viver requeressem mais criatividade. Nesses tempos idos caía no golpe qualquer um, mesmo o mais esperto. Agora não. Nas redes sociais há perfis de mulheres e homens belíssimos que são administrados por homens e mulheres feíssimos. Há fotos montadas que iludem nossos pensamentos. Golpes envolvendo a ideia de sexo existem aos milhares e basta apenas escolher o que melhor agrade. Tem aqueles que oferecem enriquecimento súbito. Dá até para pagar com pix! E a promessa é de lucro de mais de 10 vezes o valor investido. No fim, hoje, caímos em golpes porque queremos, nem é por ingenuidade. Sabemos que é golpe e preferimos arriscar - para manter a vida em movimento. Jogamos fora o dinheiro, a reputação, o trabalho de uma vida... Escolhemos, de vez em quando, cair em golpes e está tudo bem. É e...

Como o primeiro domingo

Imagem
Arte: The Israelites in Egypt–Water Carriers, from "Dalziels' Bible Gallery". MET. São os primeiros dias do mês e o burburinho sobre os depósitos nas contas bancárias está em alta. Afinal, o dinheiro precisa estar presente para atestar o fato de que nós nos vendemos barato demais para sustentar a vida de luxo de alguns poucos. Mas é domingo - pé de cachimbo, cachimbo é de ouro...- e o calor pede uma praia ou uma sombra na calçada para ver os cristãos neopentecostais desfilarem rumo a igrejas. Por falar nisso, melhor calar sobre a responsabilidade de certos cristãos nas mortes de brasileiros por covid-19, violência periférica, homofobia e racismo - não quero estragar a pretensa idolatria a cada esquina. Ainda não vi meu vizinho neopentecostal - pássaros presos e gemidos à noite é o melhor que ele pode oferecer em termos de fofoca, uma decepção. Talvez, somente talvez, mandem executar as folhas de pagamento amanhã e os assalariados tenham dois minutos de paz - um dia eles a...

Case de sucesso

Imagem
  Obra: Couple Entering Building, with Attendant (from Cropsey Album).  Carl Friedrich Heinrich Werner MET. Não é o que temos que define a alegria que sentimos e o percurso para conseguir alcançar as metas e objetivos. Também não vão existir regras que definam os sentimentos antes, durante e depois. É a amplitude de tudo o que pode acontecer e, positivamente, nos surpreender que torna, no fim, a história em uma case de sucesso.  Aliás, sucesso não são as comparações, por vezes inevitáveis, que possamos inadvertidamente fazer. Sucesso é tudo aquilo que você deseja que ele seja e que, independemente do que for, só cause bem-estar.  Estamos aí em automóveis, em trânsito congestionado, sobrevivendo à seca ou às enchentes, revoltosos ou não com a subordinação do trabalho provocado pelo modelo tóxico do capitalismo desenfreado, esperando mais um feriado? O carnaval passou, depois de uma pandemia, como uma pausa necessária e breve no cotidiano de todos os brasileiros....

Uma heresia de segunda

Imagem
Escultura:Couple. Povos Sakalava. MET Os muito medíocres criaram, em seu deturpado imaginário, que devemos nos arrepender de alguma ação pretérita que, pela força do querer ou não, tenhamos cometido. Nesse mesmo imaginário estamos todos sujeitos ao erro e, por esse  erro cometido, mais dia ou menos dia, devemos ser e permanecer contritamente arrependidos. Esquecem, muito fácil, das delícias de certos erros e da necessidade de outros. Dependendo do ponto de vista e da elucidação correta de todos os fatos, não há erro. Apenas meras escolhas a serem tomadas em um mar de caos de um dado momento.  Expressar tamanha heresia só tem um sentido: o da luz. Em uma sociedade que escolhe a religião como arma e refúgio e que, sob esses mesmos aspectos, adoece paulatinamente sem que nenhum Deus a socorra, é impressionante como Marias Madalenas modernas revisitem o conceito de arrependimento quando as convém; como homens escolham um modelo que não abale sua ardente ignorância e como, desde ce...

Somente o que vejo importa

É sexta-feira. Dia de sair às ruas, fabricar uma alegria com prazo de validade e sermos livres de tudo o que nos atormenta, prende e humilha. Mesmo efêmera, essa alegria multicor que compramos uma vez por ano e vestimos no calor de quase quarenta graus nos salva do desastre de viver. Um viver imposto pelo sistema de produção e alimentado pela ganância política de homens ordinários e gênios irreconhecíveis. Esse mesmo viver que afunda, dia a dia, em um abismo de obrigações que só existem para manter firme a marcha da existência sem sentido. Alguns já deram o basta no trabalho e começaram a carnavalizar. Outros insistem em ser o exemplo para o patronato e findará a semana como se tudo estivesse na mais perfeita tranquilidade rotineira. Espere. Agora ouço os amores sendo cuidadosamente guardados no fundo das gavetas enquanto paixões intempestivas surgem de todos os recantos. São dias de paixões inúmeras e diversas e os amores não têm morada na casa do som e da agonia carnavalesca. Vejo co...

Natureza injustificada

Imagem
Off Greenland—Whaler Seeking Open Water. William Bradford. MET. Dizem por aí que nunca foi tão fácil estar próximo de pessoas que estão distante e estar muito distante de pessoas próximas. Culpam os hardwares, os softwares, distúrbios, síndromes e espectros mentais. Tudo é motivo para explicar os motivos de pessoas que dividem o mesmo sofá, a mesma cama ou o mesmo jantar poderem estar muito atentos a outrem e alheios entre si. Não há justificativas. Há falta de interesse, excesso de banalidade, falta de personalidade e busca por excessiva e doentia autossatisfação. Não é possível sobreviver à rotina sendo ordinário. Tampouco é possível manter qualquer relacionamento se o parâmetro empregado para avaliar a adequação do atual status quo for sempre a comparação.  Assim, como tem sido recorrente, acabam-se os relacionamentos com muita facilidade. Ainda existem quem chore e dramatize por força do hábito, porém o mais prático é desligar pedaços inteiros de tempo apenas varrendo para a e...

Uma verdade insolúvel

Imagem
Uma verdade insolúvel e pouco aceita: é o ódio que move o mundo. Embora frases motivacionais e textos prontos poluam nossa mente com o histerismo de  "amor" e "gentileza" como chaves para um sucesso quimérico, não é verdade que esses elementos provoquem significativas mudanças onde quer que se escondam. Para os fanáticos e adestrados religiosos, seus livros "sagrados" estão escritos com o sangue de inocentes e culpados em textos que retratam o ódio, não o "amor", como modo de vida e conversão. Para os capitalistas, claramente é o ódio que move as mais diversas indústrias e cadeias produtivas, sendo, estas, armas contra as ameaças de seu status quo. Para a gente ordinária do trabalho, da universidade, da outra rua é o ódio oriundo das mais diversas fontes e contra qualquer um e todos que move o cotidiano atarefado e falsamente importante. Não.  Não pense que o "amor" se sustenta por mais de 120 minutos ou além de uma simples ...

O aríete da autoviolência

Forçamos nossa natureza como um aríete que tenta derrubar as resistências de muralhas de castelos duramente erguidas e sensivelmente mantidas. Violentamo-nos por nada.  Aprisionamo-nos sob a vontade alheia e logo adoecemos, do corpo e da mente. E ainda ousamos atribuir nossos dissabores à genética, ao uso indiscriminado da Internet ou aos processos formativos da infância, apenas. Olhando bem e analisando o nosso entorno, percebemos, não raro, a nossa incapacidade de não seguir as massas e de sermos disruptivos.  Agora estou aqui, em um ambiente lotado de futuros doentes, físicos e mentais, embora creia que metade já possui algum grau de afetação, esperando o tempo passar sob o efeito de uma leve sonolência; e pensando na inutilidade dos currículos e dos trabalhos desgastantes que acabaremos por ter depois de tanta luta. Que o calor do hemisfério sul, agravado pelas mudanças climáticas, derreta-me antes que eu ceda ao meu próprio impulso de ser ordinariamente doente e banal....

O atinar da madrugada

Existe uma arte que se refina com o passar das horas e que é adaptada a cada vivente, embora aparentemente cruel e sem sentido: a de retirar de seu meio ambiente as pessoas. Nem sempre são indivíduos indesejados ou que representam alguma negatividade. São criaturas que, por motivos diversos, perderam a razão de existir em sua vida e não se encaixam em seu cotidiano. Pessoas que podem até não desagregarem, e que também não agregam nem lembranças passadas, mas que devem ser silenciosamente retiradas do seu convívio para economia de energia. Uma hora de completo alheamento, como quem não atina onde está, você descobre que pode viver sem uma ruma de pessoas que lotam sua agenda de contatos. Nessa hora você descobre que, na verdade, só precisa de si.

Esperando o Diabo na segunda

Imagem
Obra: Bear Killing Bull. Antoine-Louis Barye. MET. É segunda-feira e eu espero que o Diabo católico me carregue enquanto eu durmo para poder olhar, seja lá de onde for, e poder dizer que acordei morto.  Espero que o Diabo me carregue atravessando a rodovia, com todo mundo vendo, em um espetáculo instagramável para que a passagem entre para os anais do imaginário popular por 5 minutos, enquanto o corpo arde no asfalto quente. Espero que o Diabo me leve enquanto aguardo para almoçar - por choque elétrico, surto de algum coleguinha desesperado, a queda do teto... Espero que, antes desse dia acabar, o Diabo me carregue e assim chegue a minha passagem para outro plano e depois para outro e para outro depois do próximo.  Espero mesmo sabendo que o Diabo não existe.

A espera do Arlequim

Ali na esquina, onde dormitam vontades imensas, encontra-se um Arlequim. Esquecido no Carnaval passado, com roupas de cores desbotadas e invisível sorriso, aguarda ansiosamente pelo regresso das ruas lotadas, dos amores repentinas e dos encontros casuais entre um gole de cerveja e uma vontade reprimida. Do outro lado da rua, sob a marquise de um tempo que não passa nunca, estão as amarguras da visa, os deboches, as críticas, as irônicas reviravoltas de um cotidiano sem limite de caracteres.  O bloco há de passar aqui na rua, sem alas, sem fantasias, somente roupas e cabelos soltos a revoltear no calor desse hemisfério sempre quente. Agora é hora de ir e perguntar se já é hora- o Carnaval já baterá à porta e existe a pressa de uma certa alegria tempestivo.

Tergiversados

Imagem
Estamos, comezinhos, tergiversados. Somos linhas que não se entendem apesar de tantos toques - tocados via aplicativos - nunca somos sentidos.  Uma dose de cachaça e somos amigos de um bêbado qualquer. Um comprimido branco e pequeno e somos medicados contra nosso mais íntimo querer. Uma palavra escrita em um livro e somos presos a convenções mundanas. Uma bateria carregada e não sabemos mais quem somos. Tergiversados, arredondados e sem arestas. Estamos escorregadios a tudo o que nos comove, preocupados com as abominações capitalistas que nos prendem: será que teremos dinheiro para viajar, comer, vestir, sorrir? Simples tergiversos que não sabem para onde ir.

Os doentes

Imagem
  Davida Johnson Clark, Augustus Saint-Gaudens. MET Pessoas doentes adoecem outras pessoas. Isso é real e vejo todos os dias, sem nenhuma exceção. Na fila do pão, os carentes demoram a escolher o produto, conversam com a atarefada atendente, demoram em fazer o básico. No trânsito, sem meias palavras, os palavrões tomam conta do ar empesteando mais que os gases dos escapamentos.  Os ressentidos tomaram as ruas, as salas de aula, as cozinhas, as pequenas e médias empresas, as calçadas, as casas.  Os ressentidos tomaram conta de tudo. Os outros doentes, nem sempre sob medicação, preferem brincar consigo, adoecendo os outros com falsas perspectivas e palavras vãs. Clonazepam, benzodiazepínicos, anti-depressivos, anti-vida, refúgios em comprimido - tudo é usado como desculpa e arma. E a sociedade, geração após geração, sob siglas, se autodestroi impunimente. 

De verdade, muito se quer

Imagem
  Alison Saar,  High Cotton II , 2018. É fácil saber o que não precisamos - o corpo, as pedras da rua, a poeira sobre a lataria dos automóveis, os cabelos coloridos e crespos das pessoas berram a cada instante mostrando não apenas desagrado como também franco desarranjo da natureza do querer real que se refugia no íntimo. Não demora e o cansaço se faz presente, o malquerer dita as palavras e nenhuma boa vontade surge no horizonte das coisas que se deseja.  Agora estamos nós, lutando contra os poderes instituídos, esperando milagres intempestivos, como se não detivéssemos poder para sermos melhores ou ditarmos o fluxo dos acontecimentos que nos pilham a vida, o humor, o estado atual.  Nada mais nos importa. E, de novo, é hora de ir.  A lagoa secou. A vaca dá leite amargo. O milho não cresce. Nós definhamos aos poucos.  O pouco não nos encanta, assim.

A queda dos monogâmicos

Imagem
The personification of peace. MET. Meia palavra basta. Uma escolha por ser ausente basta. A publicação das escolhas basta. Entende quem quer e quem pode. É por isso que agora eu observo, na claridade da luz do dia de verão mais quente e calorificamente intenso, a queda de certas relações monogâmicas com a mesma certeza que temos, hoje, da queda de impérios, regimes, governos, populares figuras. Porém, não se engane, não é a espera pela queda de certas monogamias de periferias que importa por inveja, ressentimento ou ciúme; não é. É apenas a confirmação, cedo ou tarde, das consequências das escolhas, dos silêncios, da corrosão de relacionamento que precisam de muito esforço para sobreviver. Relacionamentos amorosos, amigáveis, paixões contidas em máscaras diversas. Não precisa justificar.  Não precisa fugir. Não precisa dizer-se feliz em uma redoma social. O tempo está aí, correndo em seu fluxo imparável, rumando para as quedas - de cabelo, de dentes, dos seios, das nádegas, dos rel...

Percorrendo a linha de mim

Imagem
  Bust of an Old Man Wearing a Fur Cap, Jan Lievens. MET. No passado corri léguas sob o sol por quem me jogava migalhas e feliz me encontrava - tantos traumas me açularam ao erro, à discordia, ao caminho longe de mim que hoje não mais percorro um metro por ninguém, às vezes nem por mim.  Agora sou esse - solitário perdido em meio a meus pensamentos mais banais, perdido na estrada da vida e sem saber para onde ir, apesar de saber com a máxima certeza que não vou seguindo ninguém, para nenhum lugar. Amanhã, quando eu acordar, vou saber que de todas as humilhações por que posso ter passado  nenhum remete-me à mendicância de afeto, de atenção, de carinho. Sim, pode faltar-me o alimento, o exercício físico, o teto, a cama, a cadeira, a fé; só não me falterei a mim.  Assim começa uma madrugada, aninhando um dia.  Assim prossegue minha vida. Assim eu sigo.

Ultimátum

Imagem
View of South Street, from Maiden Lane, New York City. MET.   Aos poucos, sem alarde, sem mensagens dramáticas, sem olhos chorosos, em um estado de vívida depressão, vou me envenenando aos poucos, sendo imprudente aos poucos, sendo autodegradante ao extremo.  Morro aos poucos, de faltas imensas que foram transferidas, geração após geração, até chegar a mim, sempre com um requinte a mais. Falta o teto, o alimento, o lugar para a memória feliz e para a fotografia, faltam os sentimentos, falta a dignidade.  Morro aos poucos pelos excessos que a falta faz.  E, sendo um moribundo à beira da estrada da vida, marginal das próprias construções sociais, não é estranho querer deixar essa vida de serventia ao alheio. Não é.  Loucura indescritível é fazer diariamente o que outrem deseja e esperar conquistar-lhe sorrisos e palavras cálidas. De mim só quer a minha força para construir seus castelos e manter o cheiro de mofo das edificações erigidas em um passado sangrento. Po...

Palavras em riste!

Imagem
Hiawatha ,  Augustus Saint-Gaudens. MET.   Ali na esquina da praça Horácio Souza Lima, onde tantas expressões são manifestadas diariamente e por tantos indivíduos particulares, ouvi, em alto e em bom som, que  "quem sai com viado é viado também!". Atirada à queima roupa em um meio-dia parece mais um assassinato à liberdade de expressão do próprio querer de sair com quem desejar para não parecer viado . Ora, passou o tempo e a geração de quem se escondia entre becos e palavras codificadas para marcar encontros e expressar afeto pelo mesmo gênero. Os lugares escuros, fétidos, sigilosos ficaram para aqueles que andam armados com problemas sociais de autoaceitação e extremo julgamento da vida alheia.  Ao meio-dia, de qualquer dia, a fome bate à porta de homens e mulheres e ignora completamente os frequentadores das camas; a violência, por outro lado, assim como as criaturas armadas de palavras, escolhe lugar, cor, gênero e classe social, vitimando gays, pretos, periféric...

Comida de monstros

Imagem
Foto: Funerary relief. ca. 200–273. MET. "O infortúnio é múltiplo. A infelicidade, sobre a terra, multiforme."  Berenice Edgar Allan Poe  Procuramos infelicidade em tudo o que nos cerca, até mesmo nos momentos de felicidade e tranquilidade, porque não sabemos lidar com estas duas facetas da vida. Fomos talhados para a agonia, para o trágico, o drama, as ruindades do cotidiano. Se algo nos vai bem logo procuramos  um ponto sensível para sermos molestados por nosso próprio modus operandi de viver em estado de lágrimas.  Traições, palavras falsas e cruéis, pessoas a oprimir e sermos, por elas, oprimidos, escassez transformada em excesso - elementos de uma vida viciosa que nos espera a cada noite.  Somos seres mesquinhos com nossa própria alegria de bem estar e isso nos mata aos poucos, cada dia uma dose maior, cada hora um momento morto por nossas mãos assassinas de bons momentos. De repente isso é reflexo da doutrinação cristã que nos imprime à mente a ideia de qu...

Palavras de um velho

 Nunca, nunca mesmo, devemos voltar para onde tanto lutamos para sair, mesmo que seja a única opção. As coisas tendem a dar errado porque até as pedras da rua, seus pensamentos mais obscuros e seu íntimo sabem que aquilo, aquele lugar, aquela pessoa são representações de algo ou um momento terrivelmente ruim. Quando voltamos, por descuido ou sentimento de urgente necessidade inaudita, vemos os caminhos que dão em terrenos baldios, misérias sem fim que nos coloca em pé de guerra com nossa própria boa vontade. Tristes história de um velho que se mata a cada encarnação por não saber como encerra o ciclo curto da vida - são essas as reminiscências de quem sabe que voltar nunca significa boa coisa. Há que se dizer, no entanto, que nas vezes em que voltamos (e apesar de tudo o que foi escrito não são poucas as vezes) igualmente nunca somos os mesmos, nem as circunstâncias são as mesmas, nem mesmo o espírito alheio é o mesmo. Não obstante tudo isso, esse velho volta, sempre volta, a essa ...

Inflamado estar

 Está aí, o tempo, a chave da porta, o cadeado destrancado, a rua livre, a desconexão com os pudores. Tudo está pronto. O caos no devido lugar. Mais tarde, quando a rodovia estiver sendo ocupada pelo movimento dos automóveis e o dia exigir rotina, comida, sono, metas, trabalho, família nada mais poderá ser acrescentado. Eu talvez não poderei ser acrescentado. Talvez eu já não esteja mais aqui, sob casas de aranhas e entre poeiras diversas, quando a porta resolver abrir por livre e espontânea vontade. Um dia, que sempre chega, o prazo de validade acaba e então só o resquício de uma lembrança há de sobrar. E é assim, demonstrando na medida apropriada e ressalvando o que um dia pode sumir, que a liberdade existe para todos. Isso, ao contrário do caminho até aqui, não é para fazer sentido. É para queimar a madrugada, a mente, os olhos, a vida. Isso é o que sobra quando nada mais é suficiente. 

Orgânico Robô

Não adianta esconder sua coleira virtual. Nas suas roupas, no seu modo de falar, na sua dependência pela aprovação que vem do julgamento alheio e na sua carência agressiva e raivosa - em tudo o que você esbraveja cotidianamente é possível perceber a sua coleira.  Cansando pai, mãe, irmão, filha, vizinho, colega de trabalho você segue tendo sua vida ditada pelos algoritmos do Vale do Silício como um animal abandonado que a muito custo encontrou uma mão de ferro para dominar seu corpo, seus atos e sua mente. Agora você não lê textos maiores que um parágrafo de 240 caracteres, não desvia o olhar da tela na rua, sente a necessidade de tudo gravar, não aproveita o percurso de um processo de crescimento. Agora você é só um robô orgânico que precisa trabalhar para manter o algoritmo. Agora você não é nada além de uma máquina com  necessidades orgânicas e sua coleira virtual sinaliza que sua inteligência está em franca obsolescência.

Incertidumbre

Amanhã, talvez, eu não acorde. Ou acorde e não saiba como serão as horas - essa é a sina dos velados desvalidos e dos pobres latentes.  Amanhã há de ser outro dia, é verdade. Porém, velhos carmas ainda persistem como marcas visíveis de uma vida que oscila entre barrancos e planícies. Um quê de incertezas norteia a escrita desses dias que parecem ser mais alheios que meus. Sobre o amanhã eu não sei. O que imagino é o suficiente para caminhar com o peso de viver e, mesmo que isso não baste, é o que existe para o agora.

O primeiro domingo

Pela tela desiluminada do meu aparelho móvel eu vi a dedicação na cozinha, lavando os pratos enquanto no forno a comida ficava pronta. Eu vi por uma tela desiluminada e em sigilo. E não pude deixar de ser aquecido pelo tempo dedicado à arte da culinária, à recepção, ao entendimento implícito, ao silêncio. O ano começa entre pelos, sob garfos, ao som de espirros e com olhos marejados ao observar a correção de uma das inúmeras injustiças cometidas contra o povo, em um passado próximo. Olho para o rosto suado, para a pele negra e sinto o suor com os lábios. Eu não sei como será amanhã e onde poderei estar. Por hoje, eu sei, isso é suficiente. É tudo.