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Comida de monstros

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Foto: Funerary relief. ca. 200–273. MET. "O infortúnio é múltiplo. A infelicidade, sobre a terra, multiforme."  Berenice Edgar Allan Poe  Procuramos infelicidade em tudo o que nos cerca, até mesmo nos momentos de felicidade e tranquilidade, porque não sabemos lidar com estas duas facetas da vida. Fomos talhados para a agonia, para o trágico, o drama, as ruindades do cotidiano. Se algo nos vai bem logo procuramos  um ponto sensível para sermos molestados por nosso próprio modus operandi de viver em estado de lágrimas.  Traições, palavras falsas e cruéis, pessoas a oprimir e sermos, por elas, oprimidos, escassez transformada em excesso - elementos de uma vida viciosa que nos espera a cada noite.  Somos seres mesquinhos com nossa própria alegria de bem estar e isso nos mata aos poucos, cada dia uma dose maior, cada hora um momento morto por nossas mãos assassinas de bons momentos. De repente isso é reflexo da doutrinação cristã que nos imprime à mente a ideia de qu...

Largo de Santana

Tenho vontade de sentar no Largo de Santana, observar os trabalhadores que todos os dias movimentam as ruas estreitas do centro da cidade e pensar e observar. Sim, só pensar e observar o vai-e-vem de pessoas que, como eu, carregam problemas, aflições,  desejos e desamparos. De tanto querer estar leve somos pesos que se arrastam pelo Largo esperando o dia acabar. Esperando poder deixar de ser por poucas horas. Em minhas mãos há sacolas cujo peso da inflação aperta minha conta, mas que nem ofende meus dedos. Em minha mente há pódios não alcançados na luta mensal por chegar lá.  Lá!  O lugar que queremos estar para ganhar mais dinheiro e que sabemos, sem dúvidas, que é hostil por natureza. Pensamos que lá será bom. Será?  Eu sei que um dia esses ciclos de hoje que me trouxeram até esse Largo serão encerrados. E nada poderá impedir isso. E é um consolo. Não posso parar para sentar, não posso pensar e nem me demorar. O Largo é lar de movimentos e fazeres. E o que me conso...

00:10 - Festa de morte*

Vou fazer, quando você morrer, uma festa sem precedentes. Um evento capaz de renegar, do mundo, a amargura, a infelicidade e a incredulidade. Será, das criações humanas, aquela que entrará para a história como a satânica irmã da felicidade. Com músicas, sorrisos, alegrias, brincadeiras, diversões das mais variadas e imprevistas. Será a sua festa, da sua morte. E festejarei o caixão fechado, com todo o cheiro irritante das flores e das velas. A sua lápide carregará o epitáfio do princípio da felicidade nos corações. Não que sua vida tenha sido completamente decadente, nem que sua influência tenha sido desprezível. Apenas que menos um resultará em mais água e mais comida para minhas noites de ociosidade quando nem a solidão da programação televisiva é capaz de fazer-me sorrir com uma bobagem qualquer.

00:00 - Realidade divagada*

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Quadro: Before Dinner. Pierre Bonnard. 1924. Quando eu chegar à sua casa, espero que esteja tudo fora do lugar, em uma histeria que somente nós possamos entender o porquê do açúcar estar no banheiro e da maquiagem na geladeira. E aguardo até que a desordem transforme-se em um aglomerado de coisas falantes, cada um com uma história e uma estação, de partidas e chegadas, de amores e dissabores. Olharei para a deposição de um refrigerante envelhecido e perguntar-me-ei se no século passado já existia a fórmula da decomposição dos órgãos internos. Se por acaso eu me deparar com uma evolução de algum inseto, projetando-nos como uma pré-história futura, serei obrigado a jogar-me pela janela, se tamanho for o meu medo. Entretanto, dada a quantidade de vezes que criei novos espécimes de vermes em meu liquidificador e em meu vaso sanitário, nas terras muito além do grande rio brasileiro, serei obrigado a admirar os novos bichinhos que serão catalogados só no próximo século. E não será...

23:59 - Chore*

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Quadro: Ariadne. Giorgio de Chirico. 1913. As lágrimas são os dons que fluem abundantemente naqueles que não têm medo de cair na vida sem projetos nem projeções. São as formas de demonstrar, quando não há mais o que falar, o que deu certo, mesmo dando errado. E quão sortuda é a pessoa que, no íntimo de seu consciente, verte um rio lacrimoso ao ouvir outras tantas promessas sussurradas em outras orelhas, ou por outras bocas. E quando, em uma rodovia qualquer, as horas vão passando por você sem menosprezar cada detalhe de outra viagem, outro amor, outras promessas, outros planos, o arrebol avoluma-se para lembrar que dos mais miseráveis, o pior é aquele que, mesmo querendo, não pode chorar. Chore. Nas próximas trezentas e sessenta oportunidades, chore em cada momento. Mas não seja fraco(a). Enquanto chorar por sensibilidades, imbecis, na maioria das vezes, pode transformar um ser em incorrigível criatura desprezível; chorar por uma perda, ainda que com vantagens, em uma hora...

23:58 - Insolência*

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Quadro: Venus and Adonis. Tiziano Vecellio.  Não pergunte quando vou deixar de te amar porque a resposta pode ser dura o suficiente para quebrar tuas pernas em pedaços pequenos demais para serem colados. E não perguntes se ainda te amo já que não desejas ouvir coisas desagradáveis. Não vou medir palavras para a realidade jogar à tua face quando o dia chegar e eu tiver que dizer com a sinceridade dos deuses pagãos tudo o que necessitas ouvir daquele que julgas ser teu amado mais fiel. Não faças de questionamentos insolentes o fim do meu parque de diversão preferido, tampouco torne tudo mais difícil do que já é. Procura não derramar teu pranto falso nos meus lençóis limpos, nem deixar marcas no meu bem mais precioso. Aceita que nós dois somos frutos do descaso e isso torna-nos feitores do mau amor e do mal feito a inocentes criaturas, mas não vítimas do nosso próprio veneno. Se perguntares quantas vezes atento fui a teus detalhes a resposta será a dureza pesada demais para...

23:55 - Rotina*

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Quadro: Mountain Stream. John Singer. 1912-14.  Os ventos nada fazem para aplacar o sol no meio da manhã e trazem, em suas embalagens e folhas secas, as provas de um dia que inicia o recomeço de uma rotina apenas vivida entre tantas outras máquinas e distúrbios. As folhas celulósicas trazem os dizeres de amor de um amor distante, a receita de um bolo já degustado, de uma equação inacabada, de um estrume que suja o caminho misturando-se com os passos apressados de qualquer um. Os raios solares penetram na pele, arregaçam as mangas para colocar em prática seu único dever a cumprir. E vão andando para o lado, do rosto, marcando as expressões de horror, amor e desejo, pelas penas ou calças, que passam à frente dos olhos. O caminho é longo, como o é as fases pelas quais precisa passar até chegar ao ponto médio da vida onde, parando para o descanso, acostumará com a preguiça. A luz intensa do astro maior ajuda nas marcações que farão, no tempo transcorrido, a pintar um quadro ...

23:49 - Chamado*

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Quadro: Reflection in the Mirror. Henri Matisse. 1923.  Um chamado no portão desperta os sentidos mais inconsciente de ouvidos desatentos no fundo das ondas sonoras do medroso clamor noturno. Poupam-se os demais sentidos da surpresa desmedida feita no entardecer cedo de qualquer hora em que a vontade bate e o desejo salta aos olhos como selvagens feras buscando sua presa mais fácil e abundante. Busca em perigosos terrenos matar essa vontade e no estrangular da voz em desespero surge a imagem vulnerável de outra criatura inabitada que seu desejo pode satisfazer na travessia do mato com o rio. Sem medo ou pudor aterroriza o silêncio reinante e de sua garganta ruge sua vontade mais que apressada em fazer-se tutora de seu alvo em movimento. Desalinha o pensamento em atordoante soneto febril de querer sem limite e do finito querido arranja-lhe as maneiras de superar os obstáculos postos em seu caminho. Aproxima-se de sua presa com o sorriso escorrendo entre dentes e apertos des...

23:47 - Traição*

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Quadro: Seated Harlequin. Pablo Picasso. 1901. Metmuseum Falar é o começo de qualquer bar cheio de bêbados sem casa, agitando a animada conversa no outro lado da rua sem o pudor da intromissão em particular discussão de ex-amados. Na gesticulação de palavras ofensivas estão os casos segredados jogados ao chão como coisas sem valor certa vez ganhadas. E assim enganam os dois em frente a um bar no subúrbio presente do adeus querer bem. Sons são ouvidos entre quentes deslocamentos de ar entre mãos e braços no evitar de um escândalo ainda maior que destrua de uma vez por todas seus últimos resquícios de respeito e bem querer. Para nem mesmo resguardar sua dignidade, não mais una, ser vista no esgoto abaixo, indo embora com o respeito próprio de dois seres em descomunhão está outra história desfeita em outra cama desconhecida na porta frágil de um bordel contemporâneo à moda antiga da rua sem asfalto no endereço do acaso. Vai mais uma vez outra forma de trair encorajada pelo inst...

23:43 - Surpresa*

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Obra: Young Girl Bathing. Renoir. 1892. Óleo sobre tela. Um dia seu amor aparecerá, na esquina ou sentado ao seu lado em um ônibus qualquer da vida. Ele olhará para sua face e pedirá que o ame sem consultar ninguém de confiança, sem pensar nos problemas e sem medir as consequências. Pedirá que não olhe para trás nem o deixe só quando os olhos, fechados, não puderam mais ver o resto que tanto ama. Um dia o ônibus saíra ou a esquina será ocupada por outras pessoas e a agitação fará com que surjam novas formas de amar, novos rostos pelos quais poderá sofrer uma paixão fulminante. E a vida correrá seu curso. Passará dias em anos. Mudará você e ele. Um dia olhará para o lado e relembrará aquele dia no ônibus, ou na esquina, e verá ao seu lado aquele amor pedinte, olhando para você no acordar de um sonho bom. Então, não mais que de repente, verá que tudo valeu a pena. Que chorar fez bem aos olhos sujos de coisas feias, que gritar limpou a garganta para expressar todo o amor do mun...

23:40 - Não vou abrir a mão!*

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Estatua: Head from a Statue of King Amenhotep I. Dinasty 18. MetMuseum Cada vez que a luz estupra meus olhos, trazendo-me para a realidade nua, exposta em carne viva, explodo todos os poros em estupores desenganados pela ciência do acaso. Meus casos acabaram na noite passada entre a passarela do tráfico e os limites matemáticos das salas de aula. As bundas sonhadas murcharam em meio às mais novas fantasias de um rico ascendente. Na procura de subterfúgios milhares foram os meios impróprios, próprios do escárnio, que usei para alcançar a estrela da manhã e pedir, com orgulho e cara de pau, parte daquele lugar que também é meu, por direito e dever, do mundo e de seus criadores. Desci o morro falando secamente as vantagens das casas frias e as tantas sabedorias de fundo de garrafa dos bares noturnos cheios de putas e malandros. De todos arranquei os arrepios na passagem escabrosa dos dias com falados contos verídicos de terras onde a mulher come jacaré no almoço e o homem, no jan...

23:34 – Lembranças rasgadas*

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Obra: Portrait of a Young Man. Bronzino. 1530s. Se me perguntarem de amores e paixões tidos não responderei ao chamado da curiosidade alheia, ignorar-lhe-ei até mesmo durante os instantes mais intensos de sua insistência. Guardadas em meus sentidos, as perguntas ficaram sem resposta concreta, sem certezas cujas razões sabem até mesmo os mais débeis seres do universo. Que me importa se o julgamento dos outros recaia sobre meu caminho, colocando pedras onde exista a fluidez de rios, durante o período das flores? Que interesse tem em desgraças alheias se ao teu lado somente as cascas sorriem, quebrando ao mais leve sopro do vento? Que fatos procuram nos baús lacrados pelo tempo, se nada faz de novo para limpá-los e revivê-los! Não insisto nos pecados inocentes das redes cavernosas que se fundem a tantos desenganos cometidos a mim entre o respirável ar da manhã feliz e as intempéries daqueles que se maltratam sempre e cada vez mais através de atos tão baixos e sem sentido. Não me ...

23:25 - Meu lar*

E no meu castelo o ouro está espalhado pelas paredes, em corredores imensos cheios de fotografias e muitas flores, o assoalho está coberto de poeira cristalina, vinda especialmente da estrela da manhã, uma planície repleta de segredos a desvendar por aquele que caminhar. Um olhar mais atento e poderá ver, entre as pedras de mármore e as cortinas vermelhas de seda, as marcas de rostos desenhados a óleo por desconhecidos artistas, retratando ora a alegria e o calor de um conto segredado entre o ator e o autor. Nos quartos mandei colocar muitos tipos de toalha, para quando o calor atacar, no meio da noite ou no pico do dia, possa o visitante deliciar-se com as fontes de água pura construídas nos aposentos sempre e todos reais. Tirei-lhe a visão do jardim, pois as flores são feias durante a manhã e no período da tarde não gostam de ser vistas sob a nudez da luz fria do crepúsculo. Também destruí as alcovas e reconstruí-lhes novas, em todos os aposentos, para que males de seres ocupant...

23:15 - Varrendo a Solidão*

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Obra: Susan Walker Morse (The Muse). Samuel F. B. Morse. 1836-37. A solidão para em frente à cama na tentativa fracassada de acalentar as lágrimas que escorrem de grandes olhos infelizes. Sorri para ela como a oferecer um bem nunca experimentado para nem mesmo receber, em troca, a palavra de repulsa que a fará feliz na madrugada sem amor. Levanta-se e no exercício das piadas seculares faz seu melhor espetáculo sem conseguir, no entanto, um olhar vazio qualquer. Vestida em seus melhores trajes esfarrapados está olhando a falta do sono que atormenta a criatura desolada no leito sem razões que agora resolve estar. Não precisa ler as mãos nem bagunçar a mochila em busca de papéis e restos de melancolia, porque a inexistência faz de tudo um par de falta. Falta o carinho da pessoa certa na rotina sempre mantida pelas atividades da exaustão. Falta o tapa dado na hora da piada gracejada. Falta o ciúme forjado. Falta a falta. Pede para levantar e sair, ver de novo o que precisa par...

23:10 - Pelo ralo*

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Escultura: Aquamanile in the Form of Aristotle and Phyllis. Metmuseum. E tudo vai mal quando vai tudo pelo ralo, deixando sobre o piso restos solúveis. E vai qualquer lembrança boa e de tudo sobra apenas as caixas de maldizer sinceros ou não. Mal vão também as tempestades sem frio, no calor das destruições banais. Ah, essa banalidade inverídica dos amores e paixões presentes e decentes! Quando não mais os ventos trazem as sólidas formas de nada adianta o pesar, ou o pensar, de perdido tempo, ou não. De nada valem as coisas, os planos, os ditos e desditos, os fatos, os segredos, os causos e os abusos. Não vale mais nada a moeda de troca, muitas vezes, desvalorizada, porém única. Já não vale mais o passado, porque as águas de março lavaram o chão e foram para o oceano do esquecimento as marcas dos pés cansadas, calados, imutáveis, sempre em pares. Nos trovões surgiram os ícones ocultos pelo silêncio traiçoeiro e dos raios a luz fez brilhar as imperfeições das paredes. Valh...

23:00 - Filhos do Diabo*

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Quadro: Max Ernst. 1924. Envelhecendo na mesma proporção em que a juventude faz seu melhor retrato na praia poluída de gritos não dados em respeito à boa educação, reprimidos pelo ego alheio, fazem de si a caverna de estratagemas promíscuos que levarão ao fim seus anseios mais baixos. Tornando-se velhos em plena flor etária estão nossos rostos sem bênçãos necessárias. Aparências sem alegrias na chuva ácida do asfalto que buscam em falsas jóias seus problemas resolver sem a palha levantar. E consome-se toda a vida em tragadas fumacentas de drogas inaladas na ilusão de corações quebrados na rebentação de rebolos em motéis de quinta esquina do baixo prostíbulo do qual entrada não é preciso para morrer. Morreram, então, e no abrir dos olhos no paraíso não estavam nem anjos, ou demônios lhes abraçavam, mas o movimento vivificador mostrava-lhes as fases da evolução em arrependimentos, blocos de realidade que fizeram até o mais sacro presente glorificar a verdade de lençóis sujos e...

22:47 - Destino escandalizado*

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Quadro: The Lovers, Riza-yi abbasi. Persa, 1565-1565. Não há exatamente uma única forma de manipular o destino a nosso favor: existem várias e de tantos modos que é quase impossível mensurá-las. Entretanto, mais importante que quantificá-las é impô-las ao nosso querer de modo que tudo o que desejarmos seja somente fruto do acaso de nossos desejos. Assim, entre o querer insabido e o desejo saciado é que temos, eu e você, nossos segredos inconfessáveis que tão bem nos caracterizam. Se querer não for o bastante para nós, então é preciso revirar a caixa de pandora e fazer do mundo nosso quintal e do nosso quintal nosso mundinho segredável. Nosso querer é, entre tantos outros, soberano e por ele podemos fazer o que bem quisermos sem culpa e sem medo dos olhares pedantes de outros. Nosso papel, dois em um, é simplesmente escandalizar os outros com nosso jeito particular e pessoal de viver. Nós somos os deuses de nossas próprias decisões e de nosso próprio destino. Minha maneira ...

22:45 - Quase morte*

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Escultura: Seated Figure. 13th century. MetMuseum A paisagem corria solta janela a fora pintada com um verde forte e umas manchas acinzentadas pela chuva recente mostravam as feridas nos pequenos montes à beira da estrada. E as rodas frearam. O automóvel parou após um longo silvo de pneus e asfalto. A paisagem parou. Eu parei. Parei entre pensamentos opressivos e um ar rarefeito. Parei para ver o ostracismo de uma rotina que estanca apenas com um acidente casual em uma rodovia qualquer e sem sinalização . Parei com seu nome na língua e sua imagem refletida nas retinas em um filme alegre que parece que não ter uma pausa, uma quebra, o fim e o início. Uma tela que armazena minhas cicatrizes como forma de reviver uma felicidade sombria, porque já não existe mais. Os personagens estão sorrindo para uma bobagem banal e um transeunte, no passado filmado. E, no entanto, abandonaram-se como dois desconhecidos, chorando, sofrendo, martirizando-se, banindo-se de uma felicidade contida...