23:34 – Lembranças rasgadas*

Obra: Portrait of a Young Man. Bronzino. 1530s.

Se me perguntarem de amores e paixões tidos não responderei ao chamado da curiosidade alheia, ignorar-lhe-ei até mesmo durante os instantes mais intensos de sua insistência. Guardadas em meus sentidos, as perguntas ficaram sem resposta concreta, sem certezas cujas razões sabem até mesmo os mais débeis seres do universo. Que me importa se o julgamento dos outros recaia sobre meu caminho, colocando pedras onde exista a fluidez de rios, durante o período das flores? Que interesse tem em desgraças alheias se ao teu lado somente as cascas sorriem, quebrando ao mais leve sopro do vento? Que fatos procuram nos baús lacrados pelo tempo, se nada faz de novo para limpá-los e revivê-los!
Não insisto nos pecados inocentes das redes cavernosas que se fundem a tantos desenganos cometidos a mim entre o respirável ar da manhã feliz e as intempéries daqueles que se maltratam sempre e cada vez mais através de atos tão baixos e sem sentido. Não me olhe de soslaio quando receber de mim as respostas infames dos que guardam segredos irreveláveis.
Deixo para os pensadores, mais inteligentes e cultos que eu, as respostas sábias e cristãs das quais todos se orgulham em ouvir e exaltar em citações e livros. Não caio nos abismos ocultos das palavras falsárias, nem de pureza sou levado. Piso em caminhos de onde não mais a vida brotará e pra onde ninguém mais se atreve a penetrar e com a coragem de covardes vou caminhando para um futuro desconhecido e incerto, cheio de predileções e armadilhas impostas pelo tempo e pelo acaso.
Ratos, coelhos, gatunos, cães, feiticeiros, religiosos, filósofos, medíocres, crendices, mitos, flores, pedras, água, sol, desarranjos e apegos atravessam meu caminho, tentando a modos variados parar-me no entremeado de acordos e corvos, que sobrevoam as mais insólitas seguranças. Para o passado joguei as verdades e o seio guardador de mim, ficando apenas com as imagens e as aspirações que rotineiramente aparecem em um desenrolar de pedidos inatingíveis.
Pelo caminho a roupa rasga, rasgam-se os pés, os braços, o rosto e o corpo estupora-se no calor feito durante tão pesada caminhada. São metálicos os olhos e de mármore a pele vai se transformando à medida que e aproxima outra curva. E mais um transeunte a agourar os pensamentos refletidos na face.   De um lado a carne cai meio putrefata meio sadia, do outro são os desejos ruins que caem por terra, libertando-me de pesadas correntes.

Se me perguntarem de amores mandarei recolher meus pedaços na estrada pueril na qual andei. Mandarei catar os parasitas que grudaram em mim durante o pernoite em cavernas tenebrosas. Mandarei destruir as barreiras de espinhos construídas no torno das rosas. Se me perguntarem por amores serão de trovões as respostas dadas. Não me pergunte de paixões quando não mais vale a pena a lembrança.


*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael Rodrigo Marajá

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