23:40 - Não vou abrir a mão!*
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Estatua: Head from a Statue of King Amenhotep I. Dinasty 18. MetMuseum |
Cada vez que a luz estupra meus olhos, trazendo-me para a realidade nua, exposta em carne viva, explodo todos os poros em estupores desenganados pela ciência do acaso. Meus casos acabaram na noite passada entre a passarela do tráfico e os limites matemáticos das salas de aula. As bundas sonhadas murcharam em meio às mais novas fantasias de um rico ascendente.
Na procura de subterfúgios milhares
foram os meios impróprios, próprios do escárnio, que usei para alcançar a
estrela da manhã e pedir, com orgulho e cara de pau, parte daquele lugar que
também é meu, por direito e dever, do mundo e de seus criadores. Desci o morro
falando secamente as vantagens das casas frias e as tantas sabedorias de fundo
de garrafa dos bares noturnos cheios de putas e malandros. De todos arranquei
os arrepios na passagem escabrosa dos dias com falados contos verídicos de terras
onde a mulher come jacaré no almoço e o homem, no jantar.
Os olhares dilapidaram minha riqueza,
petrificada em poucos molambos e reles chinelos de couro e borracha, em minutos
gloriosos da ilusão vivente na vida simplória de medíocres invejosos. E se
agora me ganharam entre um jogo e outro, entre uma rua e um prostíbulo, entre
um covil de ladrões e uma alcova sadista, se me ganhou vai ter que deixar onde
encontrou, porque de mãos frágeis não aceito nem mesmo a água com a qual posso
sobreviver nesses encostos de portas e infernos em que caí. Perdido nos mais
diferentes entresé de pouca admiração
os feitos grandes do egoísmo humano com o qual me sujo todos os dias ao esticar
os braços para pedir que pare, de imediato e apressadamente, mais um ônibus superlotado
de gente que vive a fantasia de buscar o inatingível em uma cadeira de madeira,
posta em lugar de sol e calor!
Nas buscas de ocupação deixei o orgulho
na porta de um lugar qualquer, esperando que seu verdadeiro proprietário o
venha buscar quando a noite cair e seu ânimo esmaecer em solidão perversa. Nos
caminhos por onde passei saí deixando o rastro da paciência pecaminosa de quem
espera o momento ideal para a derrubada no sofá da sala e de volúpia cobrir a
linha que me deu nas mesas de almoço e jogo durante toda a primavera. Um dia
achei a ocupação necessária, embora não perfeita, mais rápido e fácil que
aqueles pobres coitados que se lastimam sobre números e derivadas.
Na avenida da marinha deixei a santidade
de lado para calar a boca de mulheres com as estupidezes das invasões
concedidas ao cair da tarde, quando bêbados e piranhas, do rio ali em frente,
deixavam-se pescar por aventureiros que nada sabem de linha ou anzol. Na
profissão das ruas dei a linha, o anzol, a vara. E pesquei piranhas, tucunarés
e tubarões. Na vida conturbadíssima da avenida, o rio foi apenas um espectador
ridículo dos dias cansativos.
O morro? Subi várias vezes para fazer a
festa da cidade noturna, em quartos virgens e escuros, de onde, nessas noites,
saíam mais que gemidos e drogas, saía a nata do piranhismo das praias, rodeadas
de novas experiências. Agora olham de lado as novas recrutas de um bom negócio
lucrativo, legal e sorridente, que satisfaz todo um mundo vivo e pedinte por
dominação e carência. Já os ônibus não reparam nos sinais abertos, tampouco nos
passageiros gritando para subir, apenas em pares de pernas e peitos que
desfilam rumo às ruas movimentadas do centro e às praias, às casas e
apartamentos de luxo e às guaritas, aos matagais e aos motéis.
Subindo em carros, deixam todos os
transeuntes de face rubra com tamanha ousadia saída de uma única noite no
morro. E se alguém perguntar a qualquer uma de onde tamanho descaso
protuberante originou-se terá como resposta o sorriso malicioso da mentira,
liquefeito em palavras solitárias das quais só um nome poderá ser ouvido: o
meu!
Não me acompanham na crosta deste mundo
retardado por querer, no entanto se apaixonam pela acelerada atividade, que
pula em suas veias como cem trens-balas no instante da afronta de frágeis mãos
que as manipulam. Penduram em seus
barracos as conquistas em oferenda a mim, compreendendo que não há mais o
retorno, não existe a solidão, apenas a piora de seus estados. E por saberem de
si, quando voltam do trabalho ora prazeroso ora cansativo nem o cansaço nem a
alegria momentânea são capazes de apaziguar o amor e o ciúme dessa vida que se
prostitui para outros nas noites de festa e nas manhãs virgens de asilos
prateados, ornados e decorados pelo ouro dos fracos. Odeiam, a cada dia, as
rosas que florescem em jardim e das pétalas secas que lhes sobram no fim da
estação. Abominam a comida afrescalhada, cujos nomes não sabem pronunciar. E,
do âmago de toda a revolta, uma presença apaziguadora lhes aparece, soterrando
as angústias ciumentas de uns tantos benditos pela prostituta máxima do
universo, essa vida.
Meu exército é assim, formado por
pessoas, que na rua são objetos e em casa são amantes ciumentas, ferrenhas
guardadoras de preciosa sabedoria sofrida. Meu negócio está na parede,
pendurada; na cama, coberta; no telefone, carregado; no vocabulário,
enriquecido; nas roupas, provocantes; no caso, de momento. É composto por seres
do morro que falam em morte no desjejum e de vida no lanche rápido do almoço.
Do alto de uma corte, suadamente construída com muitos meios e pouco trabalho,
desci do endeusamento para mostrar, na prática dos pecados, a forma correta de
trocar a vida por um bocado de matéria infértil, porém feliz. Perdi a noção do
tamanho do meu poder depois de umas tantas lágrimas recolhidas dos olhos de
minhas heroínas nas noites em que seus desejos foram queimados em poucas porcas
palavras.
Se discordei das manhas das explicações
pensadas por hipócritas é porque não sou do mundo que vive o lamento de uma
morte. E de vida acabam se embriagando, morrendo em dois quarteirões e meio de
pirataria e mentira. Se acabo tolerando
os ritmos de escabrosas traições é porque guardo em minhas mãos a espada que
decepará o último fio da razão dos mendigos que me cercam. No desenrolar do
novelo, eu sou a ponta que prende as partes e os ais da mortalidade, prevenindo
a todos dos meus ses e de minhas
vinganças. Assim, lançando ao vento das mais diferentes direções meus convites,
torno mais agradável a convivência da conveniência do baixo meretrício aos
quartos úmidos dos barracos, exportando felicidade para os altos apartamentos
com visão para a linha do horizonte.
Não vou abrir mão de meus pés sobre sua
cabeça, nem das minhas mãos se apossando de tudo o que você julga ser
proprietário! Cheguei para ficar e daqui, desse mundo de lama na qual vivem
esses mortais iludidos, não vou mais embora.
*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael
Rodrigo Marajá
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