22:45 - Quase morte*

Escultura: Seated Figure. 13th century. MetMuseum

A paisagem corria solta janela a fora pintada com um verde forte e umas manchas acinzentadas pela chuva recente mostravam as feridas nos pequenos montes à beira da estrada. E as rodas frearam. O automóvel parou após um longo silvo de pneus e asfalto. A paisagem parou. Eu parei.
Parei entre pensamentos opressivos e um ar rarefeito. Parei para ver o ostracismo de uma rotina que estanca apenas com um acidente casual em uma rodovia qualquer e sem sinalização. Parei com seu nome na língua e sua imagem refletida nas retinas em um filme alegre que parece que não ter uma pausa, uma quebra, o fim e o início.
Uma tela que armazena minhas cicatrizes como forma de reviver uma felicidade sombria, porque já não existe mais. Os personagens estão sorrindo para uma bobagem banal e um transeunte, no passado filmado. E, no entanto, abandonaram-se como dois desconhecidos, chorando, sofrendo, martirizando-se, banindo-se de uma felicidade contida em palavras retidas, em silêncios sempre imperantes.
O asfalto quente queima uma pele desconhecida, rasgada, ferida. Gritos e sangue. Ferragens e sujeira.
O tempo estagnado em um corpo que não se movia fazia-me pensar em tudo aquilo que podia acabar em um momento simplório em que tudo que importa é somente o desejo de querer. Querendo estar na verdura da paisagem, na vermelhidão negra do sangue, dentro do corpo aberto, no outro lado do véu. Querendo ir de um polo a um deserto. Querendo viver aquela película.
O cheiro de queimado, da pele, da borracha, dos neurônios e da projeção fez-me volver a outro lugar particular onde nada mais existe além de um personagem, uma cadeira e um fundo negro. Vozes que surgem da negritude e uma ansiedade que faz transcender o tempo e o espaço confinado e criar, no âmago de uma alma, um ambiente protegido por muralhas e guardas, torres com arqueiros, fossos secos e molhados, diques com animais perigosos e uma cela, no centro de toda a proteção, trancada com portões de metal maciço. E, nesse lugar, ainda existe uma cadeira, um personagem e um fundo negro.
E não importa quem tente conquistar essa fortaleza nem quantos exércitos tentem cercá-la, nada pode transpor essas precauções. Com a exceção de simples atos vindos de uma sinceridade corajosa de um ser particularizado pelas cenas de um bom filme gravado no espaço de um sussurro e que se reproduz em milhares de horas, em dias, noites e solstícios.
O corpo é levado e o verde escuro transformou-se em densa escuridão. Os cheiros e gritos foram subjugados pelo frio sensível de fim de tarde. E onde será a próxima cena se a fortaleza está fortemente trancada e protegida?

O acidente de outrem também é a vida que morre no peito de um vivente zumbi.


*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael Rodrigo Marajá

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