23:15 - Varrendo a Solidão*

Obra: Susan Walker Morse (The Muse). Samuel F. B. Morse. 1836-37.

A solidão para em frente à cama na tentativa fracassada de acalentar as lágrimas que escorrem de grandes olhos infelizes. Sorri para ela como a oferecer um bem nunca experimentado para nem mesmo receber, em troca, a palavra de repulsa que a fará feliz na madrugada sem amor. Levanta-se e no exercício das piadas seculares faz seu melhor espetáculo sem conseguir, no entanto, um olhar vazio qualquer.
Vestida em seus melhores trajes esfarrapados está olhando a falta do sono que atormenta a criatura desolada no leito sem razões que agora resolve estar. Não precisa ler as mãos nem bagunçar a mochila em busca de papéis e restos de melancolia, porque a inexistência faz de tudo um par de falta.
Falta o carinho da pessoa certa na rotina sempre mantida pelas atividades da exaustão. Falta o tapa dado na hora da piada gracejada. Falta o ciúme forjado. Falta a falta.
Pede para levantar e sair, ver de novo o que precisa para a animação voltar e a música encantar em seus toques o vento que levanta o vestido e o cabelo bagunçado no aperto de fim de tarde. Pede para não mais estar na cama de lembranças entre o passado presente na memória mais que no coração e de tudo um pouco faz aos poucos que o frio aumente, as pernas congelem e a saudade aumente.
Não mais de vazio reveste-se o ser e para longe manda sua solidão como a um animal sem dono que jaz em morte anunciada pela peste que o acomete. Levanta insolente às ordens em contrário ordenando para seus cúmplices a vitória sobre a negra nuvem que a mantinha isolada em sua redoma de maus pensamentos e falsos brilhantes.
No acorrentar de suas adversidades faz mais que abrir-se às novas conquistas, faz de si uma conquista e do passado uma vida que se move entre paredes e objetos. E do inanimado os movimentos surgem criando as palavras tanto esperadas. Varre para longe suas fobias na solidão de quem não busca o pretérito dos verbos, mas nas certezas do que já viveu rindo, embora lágrimas pudessem ter escorrido entre sorvetes e algodões róseos.
De solidão destrói seus amores e temores são banidos nos mais distantes labirintos da alma. E nessa reconstrução é possível que não sobre espaço para mais ninguém que seu próprio eu ou seus eleitos novos amores de cores diversas, de densidades novas e novo também será seu novo leito. Das lágrimas suas lembranças farão força capaz de destruir os muros que a separam de seus sonhos abstratos da noite feliz que um dia teve após a tarde amorosa na rua povoada por calçadas sujas e infelizes viajantes. Não mais quererá esperar por nenhum de seus antepassados, pois seu tempo agora chegou e o espaço da espera foi ocupado com a caminhada crepuscular.
Varre a solidão para fora da sua vida e junto com ela vai também tudo o que se tornou desnecessário, reafirmando sua nova posição de senhora de si e de seus novos objetos de desejo. Não mais o frio bate em suas costas. Não mais seus pés caminharão na expectativa vã. Não mais estará sob o sol sem sua proteção intransponível.
Seus colares trazem sua força indestrutível de oferendas nunca dadas e das passarelas populares a solidão a espera, calma e paciente, sua vez de lhe ensinar um novo jogo e inovadoras clareiras na ilusão vivida.



*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael Rodrigo Marajá

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reunião de faces

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

Nada além do que virá