23:55 - Rotina*
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Quadro: Mountain Stream. John Singer. 1912-14. |
Os ventos nada fazem para aplacar o sol no meio da manhã e trazem, em suas embalagens e folhas secas, as provas de um dia que inicia o recomeço de uma rotina apenas vivida entre tantas outras máquinas e distúrbios. As folhas celulósicas trazem os dizeres de amor de um amor distante, a receita de um bolo já degustado, de uma equação inacabada, de um estrume que suja o caminho misturando-se com os passos apressados de qualquer um.
Os raios solares penetram na pele,
arregaçam as mangas para colocar em prática seu único dever a cumprir. E vão
andando para o lado, do rosto, marcando as expressões de horror, amor e desejo,
pelas penas ou calças, que passam à frente dos olhos. O caminho é longo, como o
é as fases pelas quais precisa passar até chegar ao ponto médio da vida onde,
parando para o descanso, acostumará com a preguiça.
A luz intensa do astro maior ajuda nas
marcações que farão, no tempo transcorrido, a pintar um quadro de triste feiura,
aclamado pelo povo como sabedoria. E quem dirá que o velho não é sábio ante
tantas invenções? Somente a cachaça, antes do almoço, poderá mostrar sua
verdadeira face, cansada e deprimida, para o mundo novo que corre. Pega! Mais um
pouco e poderá apoderar-se das novidades da vizinha e do outro lado do mundo.
Aquele lado que só ouviu falar e que tem medo de pensar em conhecer. Se não
sair agora perderá o trem.
E o que importa se perder? Perdendo está
desde que nasceu sem ganhar, ao menos, a facada que lhe decepe os cabelos e a
barba, mostrando-lhe a beleza da afeminação aceita pelas pessoas que fogem da
semana refugiando-se no final de semana. Nesse refúgio acabam jogando fora a
vida, que lhes bate à porta pedindo para entrar e trazer seus problemas, suas
alegrias, suas paixões e as loucuras que deixaram na memória os melhores tempos
da vida. Mas expelem-na descarga abaixo como se fosse encontrar um rio e seguir
um rumo infinito. Para a ilusão que os cerca é muito cômodo, muito
injustificado o cansaço que lhes toma de assalto no fim do dia, focando-os a
irem para casa, onde encontram, se não a pessoa amada, a solidão companheira de
tantas aventuras noturnas.
Do medo de viver passa as horas sentadas
à beira do caminho, observando os que passam em busca de algo sem sentido,
porém glorioso e justificador. Deixa que os mosquitos levem seu sangue, sua
honra caída na palmada indigna. Os raios já se vão entre a poeira do fim do
dia, cuja fome e palermice o caracterizam. Dores surgem pelo corpo esquelético,
deformando as curvas engordadas e a essencial da velhice. Os objetos de cobiça não existem mais,
acabaram entrando em um automóvel para uma viagem sem volta para o passado
misterioso da rua de trás.
A rotina continua na pobre casa da rua
do meio, guardando para si os arautos de uma intempestiva sabedoria alcoólatra.
Bebidas que lavam a alma do fracasso e constrói as fases da vida são também as
razões para deixar entre a porta e a rua as motivações para lutar, cair,
levantar, chorar, felicitar-se e entristecer-se. Nessa roldana que guarda as
aflições que nunca viveu e a corda está acordada, girando impiedosamente para o
último mal.
*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael
Rodrigo Marajá
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