A maldição da vela

Quando as velas do bolo, sempre colorido e bem açucarado, são acesas, rostos esticados em sorrisos estranhos começam a cantar clichês e a desejar "muitos anos de vida".
O indivíduo assopra, espalhando saliva por  todo o bolo e os rostos alegram-se a afirmar que o reacendimento automático Dias velas significa "mais anos de vida".
E uma fixação em "muitos anos de vida", como se isso fosse algo bom, que representa uma bençãos contínuas de uma divindade responsável pelos "muitos anos de vida".
Uma vida longa como as de muitos Severinos descritos por João Cabral de Melo Neto é uma vía crucis que não se abrevia de nenhum modo, submetendo o triste vivente ao castigo de pecados e procrastinações sequer cometidos. Uma vida que não merece ser longa.
Por outro lado, uma vida curta, cheia de aprendizado e crescimento, temperada com uma felicidade real, merece ser do tamanho que é. Porque a vida não pode ser esticada para além do humanamente possível. 
A vida, regulada pela decadência do corpo, é do tamanho do céu. Por isso, desejar "muitos anos de vida" a alguém pode ser uma maldição acatada pelos anjos caídos e, por essa mesma razão, deve-se desejar tão-somente a liberdade de rasgar a vida em trapos, consumindo-se a si mesmo. 
As velas, o bolo, os rostos que desaparecem depois que o bolo é distribuído, são acessórios de um ritual pagão que amaldiçoa um inocente - e que deve ser interrompido como uma bexiga, ou uma vida plena e satisfeita, de repente, efêmera e irreversível.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reunião de faces

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

Nada além do que virá