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Os boçais transformadores do outro

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Arte: New York Daily News, William Michael Harnett, 1888. Met.    É engraçado. As pessoas entram na sua vida - e, às vezes, você só que instrumentalizar antigos dramas para revivê-los ou superá-los - com a arrogância de serem as únicas. A transformação que pretendem operar em você ou no seu estilo de vida é o objetivo da relação e serve apenas para mostrar que podem fazer - não que, necessariamente, seja o melhor.  Então, um dia qualquer, tudo degringola e você acaba sendo o que sempre foi, limpando não os cacos de si, mas a sujeira de ter se misturado com os porcos para saber como estes vivem. E segue a vida como se a estrada fosse um detalhe e o importante é não ter ou ver importância nas pequenezas dos relacionamentos e do pós-venda desses relacionamentos.  O tempo vai fluindo, você vai se limpando e os resíduos sólidos e líquidos são recolhidos pela limpeza pública. O tempo, sempre o tempo, julgando a todos e sendo impiedoso, para o bem e para o mal.  De rep...

Nada além do que virá

 Quando escrevi A presunção da importância refleti como somos tão pouco importantes em um mundo dinâmico composto por pessoas substituíveis e se reler Recado amistoso   poderá entender um pouco mais sobre as entrelinhas da instrumentalização do sexo.  Entre pernas que se abrem e bocam que bebem o gozo de desconhecidos de nomes populares estamos todos suscetíveis a sermos apenas instrumentos, corpos e números. Parece que isso já é tão aceito que na nova forma de fazer política quanto mais seguidores se tem mais apto a ser um candidato a cargo politico. A questão que ressurge, assim como acontece na seara da artes, é: quantidade de seguidores significa talento ou competência para ser artista ou político? Em breve poderemos ver, tal qual acontece no Pantanal, a queimada dos mais diversos campos sociais em um fogo causado pela ânsia de transformar redes sociais em instrumentos corriqueiros de poder.  Obviamente isso não dará certo como jamais deu certo importar hábitos ...

Novo humano primaveril

 É primavera no hemisfério sul e no centro geodésico da América do Sul nada se vê além de fumaça e de uma paisagem coalhada por prédios cinzentos de fumaça. Calor e fumaça. Sem sexo - já que ninguém aguenta montar sobre corpos sob o efeito de detritos e vegetação queimada nos pulmões -; e sem apetite - o calor não permite nada além de uma insana vontade de beber água ou uma bebida açucarada qualquer, o dia vai escorrendo, na lembrança de um suor que não existe em virtude da baixíssima umidade. Há emoções latentes que não se atrevem a ultrapassar a barreira do aceitável socialmente. Há homens que se amam. Há mulheres que se desejam. Há casais que não mais se tocam. Há corpos mimetizando pessoas.  A primavera começou. Sem poesia, sem expectativas, sem amenidades. Apenas começou porque deve, não por que escolheu. As músicas que apaixonavam e abriam essa estação retratam um tempo sem calor excessivo, sem falta de água, com flores e olhares singelos (se um dia houveram). Hoje a pri...

Inexiste vida cuiabana

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  Foto: Cuiabá, 16h, coberta por fumaça. R. R. Marajá. Não há vida em Cuiabá. Pode parecer extremismo afirmar que não existe vida na capital de um estado importante para o agronegócio brasileiro. Talvez seja essa importância toda que torna Cuiabá inabitável.  Fumaça dia e noite, altas temperaturas (ou o extremo oposto) e um projeto de "vida" que não contempla pobres torna essa cidade completamente tóxica para a vida e sem nenhuma condição de abrigar o viver. A qualidade do ar é sempre ruim ou péssima, o transporte público é de uma segurança questionável (já que em Várzea Grande, cidade-irmã de Cuiabá e componente da região metropolitana, alguém sempre está morrendo atropelada pelos ônibus que as atende) e a alimentação, impregnada por agrotóxicos ou à base de açúcar e sódio, não ajuda.  Do que adiante ter parques públicos se não há condições ambientais para uma simples caminhada? E a questão ambiental é tão séria que as pessoas realmente acham que os animais são os vilões...

A sífilis católica

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 Não é de hoje que se conhece os efeitos do catolicismo na vida cotidiana do povo brasileiro. Por meio dessa poderosa arma de dominação empregada pelos colonizadores da imensa área terrestre que se conhece como Brasil, o povo foi obrigado a aceitar figuras ditas sacras como suas; o povo foi obrigado a comer ou a deixar de comer em função de dogmas e "festividades" católicas; o povo, que construía as edificações católicas, sequer podia - e, de certa forma, ainda acontece - entrar nos ambientes católicos.  Para o povo, criaram igrejas católicas distintas, sem muito requinte ou cuidado, apenas o suficiente para manter sob domínio um povo colonizado e expropriado de sua cultura, de sua terra, de sua identidade.  O sangue que banha as paredes dos templos e edifícios católicos criaram os pentecostais e os neopentecostais. E o povo seguiu sendo colonizado, acreditando na ficção de um único deus, seletivo, opressor e imaginário. Um deus que não se manifesta diante da mais absurda...

Carta a um ausente VIII

 Estamos em centros geodésicos diferentes, em fusos horários diferentes, em plásticas e descartáveis culturas. O calor de um lugar é a brisa fresca de outro e nada pode mudar o fato de que, em minúcias, a vida possui caminhos que de tão diferentes se tornam iguais.  "Estamos sós e nenhum de nós", como retrata aquela letra de música, sabe em quantos quilómetros haverá encontros e reencontros. Temos sido o que foi possível ser e nada parece ser o suficiente em uma sociedade em que nada basta, nada satisfaz, nada melhora o humor daqueles que estão decididos a não ter bom humor. É assim que se conclui que, sem exageros ou pausas dramáticas, jamais nos reencontraremos. Não somos mais os mesmos, nem mesmo nos poucos traços físicos que nos resta. Não teremos mais o minuto de silêncio olhando as ondas cessarem na areia, as inúteis ideias de possibilidades diante de uma meia parede, o clarão da agonia de estar e nunca ser o suficiente. Aqui onde o ar é insalubre e a água indisponível,...

Carta a um ausente VII

 Das liberdades que nos damos, que nos permitimos e que nos aprisionamos resta somente o estar liberto, jamais o ser liberto. É por isso que nos refugiamos em redes sociais digitais, esperando que olhares curiosos sejam o afago na solidão que nos devora. Agora temos exemplos decadentes, líderes mortos, ídolos cadentes. E não sabemos nada além do básico para sobreviver porque temos medo da imensidão da nossa finitude. No centro do continente, há fumaça, calor - um frio de vez em quando - e muita morte em forma de vida. Por aqui vejo pessoas que não sabem o quão condenadas estão e é bem provável que eu comece a me tornar podre por dentro, como eles, e, diferente do que tentei até agora, sadio apenas da mente. A comida aqui ainda não tem gosto - reluto a provar o que não pode ser provado devido a contaminações diversas. O ar, pela primeira vez em minha pouca existência, é tido como insalubre devido à sua total falta de qualidade. A vida parece ser só isto por aqui - uma sala de espera...