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Mostrando postagens de maio, 2021

Quando fui à padaria

Fui à padaria da outra rua, quase no mesmo velho horário. Vi as mesmas pessoas que sequer imaginam as reviravoltas da minha vida. Vi as ruas ainda sendo calçadas e os mesmos desocupados na esquina.  Eu fui à padaria sozinho, nesse novo recomeço, nessa nova realidade. Vi, expostos na vitrine, a torta que eu sempre como, pastéis e coxinhas. Ah, coxinhas!  Ela amava aquelas coxinhas! Sua paixão por elas beirava a indecência e era divertido de se ver. Sua vontade e sua voracidade não tinha limites. Não tinha como não lembrar. Dessa vez, como será daqui para frente, eu deixei a coxinha lá, à espera de outra amante loucamente apaixonada. Levei minha torta e minha coca-cola.  Eu fui sozinho e lembrei memórias de um passado que ainda não se definiu bem. Fui por sua obra. Por sua obra... Agora estou sentado à porta, ensimesmado e indagando-me: será que as pragas do sangue finalmente me alcançaram?

Preços, vizinhos e pandemia

Sexta-feira.  Dia de Oxalá. E mais uma semana que vai terminando. A pandemia segue seu ritmo darwiniano. E eu sigo meu ritmo, seja lá qual for. Meus vizinhos deram uma parada nas comemorações rotineiras, em que nada em específico se comemora. Eu vi, sem querer, nos abusos de propagandas das redes sociais, o preço da cerveja. Meu Deus, onde vamos parar com esses preços?  E, justamente por tão salgados preços, é que não entendo como tantas pessoas, como meus vizinhos, bebem tanto e quase todo dia. Entre bebidas e sabonetes caros e de marcas não goumertizadas, eu sigo, não sei para onde. O que sei é que hoje é sexta-feira. Dia de abraçar e agradecer, como bem interpreta Maria Bethânia naquele show belíssimo .

Máscaras apavoradas

Minhas únicas duas máscaras, que são descartáveis, estão penduradas em um prego na parede como se fossem troféus de uma macabra competição. Sem poder sair e sem dinheiro para ter que sair, os dias vão passando rápido, como se estivessem com pressa. Não sei qual o destino, mas que quando vejo já é noite e o sono bate à porta da minha mente. Lá fora parece que o mundo continua muito igual ao que era antes, acrescido apenas da sutil diferença de máscaras em rostos apavorados pelo inimigo - invisível a olho nu. Aqui dentro há tentativas de sobrevivência. E só.  Até quando? Creio que nem Deus sabe.

O milagre sou eu

Não há milagres a procurar. Não há nada a procurar porque o que temos é suficiente para muita preocupação e muito abuso.  Falam sobre fenômenos celestes e declarações de ilustres figuras que em absolutamente nada pode mudar minha vida e dão a fatos e desacertos supérfluos a competência de ditar o meu amanhã. O meu amanhã! Amanhã eu não sei se estarei vivo, se a comida chegará à minha bancada americana ou se o banco, finalmente , liberará meu dinheiro. Amanhã nem a Deus pertence, quanto mais a mim. Eu sei do hoje, que já passou, e do agora. E nem é muita coisa isso o que eu sei.  O milagre sou eu - que vou seguindo nessas tortuosidades da vida. E esse milagre, eu, estou achado. O que eu quero agora é me desachar.

Eu

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Foto: Rosto atribuído a Ptolomeu II Filadelfo ou um contemporâneo. The Met.  Eu tenho em mim o fim e o começo Sou o sábado de Aleluia e a terça de Carnaval Eu sou o amor que não se diz E o ódio do amor ferido Eu sou a canção que nunca escrevi E as palavras que os outros disseram Eu sou o tédio de um domingo E o motivo do contentamento  Eu sou o brilho no olhar E o ronronado do felino  Eu sou o filme que ainda não estreou E os aplausos que nunca cessam Eu sou o início  E brisas leves dançam ao nosso redor Eu sou o fim E as lágrimas que salteiam Eu sou o meio Que nunca acaba.

Lodaçal da madrugada

A madrugada começou e o meu banheiro ainda fede. Bactérias se amontoam e criam cores por todos os lados. O mofo cresce sem controle e minha única opção é fechar a porta. Da rua vem um som repetitivo, triste por letras e silêncios. E, se a cultura popular estiver certa, alguém fala de mim e não é coisa boa. Minha orelha esquerda lateja e esquenta. Começou repentinamente. Perguntas sem respostas. Perguntas retóricas. Perguntas incômodas. E eu sei das respostas e não suporto nenhuma delas. Não suporto o tempo. E tolero-me. A madrugada vai seguindo, entre chuvas e mosquitos, entre cervejas e barrigas que roncam. Só eu que pareço não conseguir sair do lodaçal.

Carta a um Ausente III

Oi,  acho que você nem anda lendo as massivas que envio. E espero que esteja bem de verdade e  não apenas usando expressões banais para esconder a realidade. Viva sei que está, amém. Do lado de cá as notícias são tristes e vergonhosas. Você não acreditaria a que níveis permiti que me rebaixassem. Estou tentando me reerguer. Estou tentando confiar em que tanto me fez mal, hediondamente, e sempre concluo que é quase impossível - sempre descubro novos conluios e isso é muito triste, por muitas razões. Não sei como anda essa sua adotada terra. Parece que ela engoliu você e aos seus e se recusa a regurgitá-los. Eu, por outro lado, ando sobre várias terras e em nenhuma encontro morada, um lugar de paz. Quem sabe a Covid-19, um dia, traga toda a paz que  eu mereço. Acabei de limpar a casa e uma preguiça me bateu. Aqui não é lugar para você, sempre achei que certos lugares, dadas condições, não devem ser vistas por você. Por isso mesmo não a convido.  Quem sabe eu visite voc...

Por entre paredes e telhados

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É noite e estou sentado à porta.  Não há alimentos em casa. Também não há móveis. Há apenas eu, minhas próprias promessas, minhas frágeis resoluções, meu mundo em tempos de pandemia. Vejo, entre paredes sem reboco e tetos irregulares, nuvens que se aglomeram e que depois desistem. Ah, nuvens, quantas desistências eu deveria ter cometido e, por razões que hoje ignoro,  não cometi. Nos recantos da escada estão mentiras se amontoando com a poeira que vem da rua. Nas paredes desta casa há manchas que não sairão facilmente e que foram tão perversamente postas. Em mim, vendo tudo isso, não consigo aceitar o esquecimento de tantos eventos infelizes apenas para deixar meu algoz feliz, sem a vergonha e sem o peso dos seus próprios pecados. É noite. E eu ainda vagueio sem rumo.

O branco da sexta-feira

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Ilustração: @thiagomartinni / reprodução instagram Hoje é sexta-feira, dia de vestir branco. Dia de agradecer ao Senhor do Pano Branco e buscar a paz interior que o mundo tenta me tirar. Dia de olhar para feridas e machucados e pedir a misericórdia de quem tanto sabe sobre as voltas do mundo e da vida.  Hoje eu não vesti branco porque branco eu não tenho.  Vesti-me de agradecimentos.  Depois de não terem remorso por traições, egoísmos e falsidades diversas; depois de me humilharem publica e repetidamente; depois de me rebaixarem aos níveis mais abjetos que se pode atingir, eu só posso agradecer por não me abandonar como os falsos amores, as falsas amizades e os falsos amigos. Agradecer por me permitir pensar e refletir em meio às mais diversas situações constrangedoras. Agradecer por me deixar ser quem eu quero ser, apesar de tudo e de todos. .Hoje é sexta-feira e eu visto o branco sob a pele. E eu sei que a minha pele será limpa e curada. "Oxalá, meu Pai Tem ...

Pulsando

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É, Arnaldo, o pulso ainda pulsa. Por insistência e por uma involuntariedade que excede qualquer perspectiva. Está aí, pulsando. Só as palavras que estão escassas.  Do muito que foi dito. Do pouco que foi compreendido. Do silêncio envolvido. Das meias verdades. Das verdades completas amenizadas. Da vida. O pulso está aí, apesar de tudo. Não há mais o que fazer e nem quem ouvir porque a compreensão não está em lugar nenhum.  E nenhum aneurisma à vista. Foto: Rafael Rodrigo Marajá/Arquivo Pessoal

Ser ou estar

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Enquanto sou brinquedo está tudo bem. Enquanto sou o pano que seca e limpa a sujeira está tudo bem. Enquanto sou a desculpa e a justificativa para tudo e qualquer ato vil está tudo bem. Porque há pessoas que só nos querem para humilhar e maltratar e quando não o podem ficam tristes, às vezes até desesperadas. E entender essa dinâmica é uma faceta que precisa ser desenvolvida. E uma relação assim não muda, não há como mudar - você sempre vai precisar estar mal para que outro esteja bem. E isso é parte da vida. Eu já escrevi sobre amores de etiqueta, ilusões e desilusões. Escrevi sobre amores passageiros e pessoas que nada merecem. Escrevi sobre tudo isso e tudo tem sentido.  Escrevi sobre traições e como a pessoa traída é, na verdade, a menos enganada. Escrevi sobre mentiras e como eles destroem tudo. Escrevi sobre cada faceta dos relacionamentos de conveniência. Entretanto, nesta manhã, eu não queria escrever sobre isso. Ler isso. Ser ou estar, como o verbo inglês que pouco muda. N...

Pedras nos bolsos

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Foto: Hiilili Kokko (figura de Katsina). The Met. .. Fez pouco sol e a chuva pegou os transeuntes de surpresa. Eu estava em casa, andando para lá e para cá, com pesos nos bolsos e me afogando em minha realidade. Apenas sufocando com ar. As nuvens, de repente, pesaram ainda mais e a luz diminuiu. Fora ficou igual a dentro. E nenhuma música foi ouvida. E tive que remexer em recentes  machucados, olhar para sangramentos e inflamações e tratar, não por cuidado, mas por necessidade social. Ninguém vai entender. Nunca vai entender. Nem mesmo quando, um dia qualquer, eu tiver ido para além-disso-aqui. Não há palavras. Não há momentos. Não há estados. Só o estar com o nariz na tensão superficial que é esses dias. E o que eu quero não importa, raios e trovões serão um alívio e um dilúvio será menos que o esperado.  Quantas vezes o mundo acabou desde 2012?

Irrepresável

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Alguns enfrentam enxurradas que devastam suas casas, seus pertences, suas rotinas pobres e miseráveis. Outros enfrentam enxurradas de trabalhos, problemas e superficialidade. E alguns enfrentam enxurradas de si mesmo. Qual seria a pior de todas? Todas. Para quem luta e segue o marketing capitalista, perder os eletrodomésticos é uma dor que só se supera com outras compras. Para quem faz da própria existência apenas trabalhos não pode esperar mais que desafios superficiais, que viciam. E enfrentar a si mesmo é só uma questão de necessidade. Todas juntas, essas enxurradas devastam qualquer um. Mas para quem não tem bens materiais e sequer trabalho, a árdua tarefa de autorregeneração é intensa e exclusiva. De repente até dolorosa. A água nunca para. Nós nunca podemos parar. Mas não há botes, salva-vidas, farol. Às vezes aparece alguém que nos ajuda a encontrar uma ilha flutuante e que nos deixa na tranquilidade de que tudo poderá ficar bem.  Então, como humanos e repetidores dos itans ...

Crônica de uma vida insuficiente XX

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Domingo de Sol. O Brasil é notícia no 20minutos.es por causa da média móvel de mortos por covid-19. Os governos estadual e municipal reimprimem medidas de contenção da população com o objetivo de controlar os casos de mortes e de infectados por essa que é uma peste negra moderna. Na rua, aqui na minha porta, música alta comemora o calor, a cerveja, a folga, o feriado que se aproxima. Se há isolamento? O meu. Só o meu. Sempre o meu. Ainda deu tempo de comprar uma coca-cola e alguém baixou um pouco a música. O calor está de matar e faz com que o cadáver do homem assassinado ontem na praça (traficante e usuário filho de um policial da outra rua) se decomponha na velocidade escapista das moscas. Um domingo, apenas.

Depois da chuva

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As chuvas de maio preparam o caminho para o inverno e parece que ficamos mais propensos a sentimentos de proximidade com o outro. O frio parece uma liga que nos conecta a padrões de convivência. E então, quando a chuva tranca-nos em casa, parece que não há como suportar tantos quereres. E estar só é apenas o prelúdio de uma situação que não termina. O inverno chega. Nosso íntimo clama e lamenta. E dia após dia somos carne e ossos envoltos em frio, água e sentimentos. Palavras perdem o sentido à medida que o inverno vai passando. E quem sobrevive a tamanha pressão poderá dormir no doce clima primaveril. Como, no entanto, sobreviver para viver tal momento? Foto: Rafael Rodrigo Marajá/Arquivo Pessoal.

Pobrices de quarentena

A quarentena entre os pobres do Rosa Elze parece as festas de fim de ano, só que em Março e sem muita água celeste para encerrar o verão. Os meninos pobres ainda soltam pipas na rua e as meninas saem à noite para brincar - uns seguram objetos cilíndricos que os ligam a pipas, mesmo à noite, outras correm para colocar objetos igualmente cilíndricos na boca. Os pais? bêbados que dormitam o dia todo e quando a noite finalmente cai correm para dentro de casa para ou produzir outro pequeno demônio ou assistir às reprises de novelas. A rua fica aí, cheia de gente esperando que a pandemia seja trazida na carona dos traficantes. Uma varredura de doença que pretende acabar com os pobres, velhos e novos diabos, parece nunca chegar nas ruas mais periféricas dessa que, dizem, é a cidade mãe de Sergipe. Poeira, drogas, baixezas de todos os tipos  - nada de novo durante essa quarentena que parece estar longe do fim. ___________ Acesse e leia: Anjo da Guarda  (Amazon) ...

Um minuto no limiar

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Um minuto para a meia noite. Um minuto para o hoje ser ontem. E nada mais importar. A luz que entra vem de fora e o ar frio rodopia ao meu redor. Baixinho, quase um sussurro, a música evoca pensamentos e eu vou seguindo, com os olhos na escuridão, um amanhã que ameaça ser hoje. Não espero palavras. Não espero sentimentos. Não espero ninguém. Só que o minuto acabe e eu possa respirar aliviado por mais um dia que se foi. O que será de mim amanhã?  O que foi de mim ontem? O que sou agora? Começou a chover e o minuto passou.  O agora mudou e eu continuo ouvindo a música, no escuro, olhando para o nada. Nada. Palavra estranha que diz muito e deixa-nos na orfandade de uma definição. Talvez sejamos órfãos de nosso eu, que se perdeu por aí. E como Oliver precisamos apenas seguir em frente, apesar das maldades do mundo e das inocências internas. E, como Oliver, precisamos esperar um melhor amanhã sem que paremos no meio do caminho. Um caminho cheio de pedras, não só uma, como disse Car...

O todo ou nada

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A vida, uma desordem que encontra repouso no caos, eu vou colocando em pontos, vírgulas e reticências esperando que mais tarde tudo se resolva. Que o tempo, que a tudo cura, lamba meu corpo e me resfrie do calor da fornalha. E eu estava colocando todas as pontuações necessárias quando nostalgias e saudades me assaltaram, levando minha frágil paz. De momento, assustado, quase me desesperei. Refleti. Armei estratagemas. Fui buscar o que era meu. No meio do caminho, Simone começou a cantar Migalhas e então eu parei. Tão linda, tão profunda e tão real que parecia que o compositor tinha escrito cada verso em minha homenagem e que Simone cantava para mim. A cada segundo eu retrocedia à minha frágil paz e ao momento em que de mim roubaram. E pude dizer, junto com a canção, que eu não quero e nem preciso de migalhas de um amor egoísta. Que a pessoa, incapaz de mudar e de compreender o que realmente significa viver um amor, seja feliz e guarde as migalhas desse amor tóxico, embora promotor de b...

Dois céus

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O frio trouxe a chuva. Ou foi o contrário, não lembro. Ao meu redor há espaços, não vazios.  E sobre mim há uma fina capa que costumamos chamar de vida. E com ela sou capaz de ouvir vozes no andar de baixo. A água para o café está sendo aquecida e uma boa noite de sono passou.  Por aí, nesse mundão, há palavras venenosas que tentam me encontrar, expressões injustas que tentam me alcançar. E eu me recuso a aceitá-las, encontrá-las. Eu gosto dessa chuva toda que inunda o ar de expectativas e alaga tantas ruas. Eu gosto de ser pego pelas gotas na volta da praia. E de molhar-me depois de um banho intenso de chuva. Há quem diga que não me entende e que me compreender é difícil, mesmo quando tudo é tão claro quanto um dia de sol, porque por dentro o céu é quase sempre limpo e de sol a pino e deve ser por isso que gosto tanto das nuvens de chumbo do céu aqui fora. O cotidiano no andar de baixo começou e é bom que eu comece o meu logo. Foto: Rafael Rodrigo Marajá/Arquivo Pessoal. ...

De dentro para fora

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As minhas dores são poucas e a quantidade desconheço. E nem quero saber seus abismos, meus buracos negros, para não me remoer. As minhas dores são feitas de todos e de muitos e a digestão de cada uma delas ocorre de uma vez.  De dose única dilacero-me. Rasgo-me todo.  E é bom.  Passada a dor, o sofrimento ensina a quem se dispõe a aprender e rompe com todo querer e maldizer.  As minhas dores são visíveis e as minhas cicatrizes são densas.  E ficam, como prova, de uma vida que passa. Viver parece ser isso, rasgar-se e curar-se, de dentro para fora, dos lados para dentro. Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Arquivo Pessoal.

Por onde fantasmo

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Sentado, sentindo a brisa fria de uma chuva que se aproxima e pensando. Pensamentos que se desdobram para justificar e desmitificar o passado e o presente, em uma vã tentativa de não cair em armadilhas.  Em paredes decoradas e esperas diversas, eu vejo o tempo. Ainda ouço sorrisos, olhares e dias. Vejo dias que correram, pessoas que passaram, imagens que foram se perdendo ao longo do caminho, entre digestões sentimentais e rancores que envenenaram a partes lindas da vida. Eu sei que tudo passa e que pedaços de vida imortalizados cobram seu preço, que às vezes é doce e às vezes é muito amargo. E sei que tudo passa para que possamos valorizar o hoje, o amanhã e passado. Eu sei que estou andando por ali. Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Arquivo Pessoal.

Inominável expressão

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Poucas expressões eu considero realmente graves a se dizer a outra pessoa, principalmente quando esta foi, em algum momento e por breves instantes, querida. E são graves por que carregam em si o peso do coração e dos sentimentos mais profundos.  No entanto, são necessárias. Para que o outro passou do limite, ultrapassando qualquer consideração e afeto, pavimentando uma estrada de mão única e só de ida. Porque, às vezes, deixamos que as pessoas nos tratem com desdém enquanto esperamos que elas melhorem um caráter defeituoso. E elas, frequentemente, não querem ser melhores; elas querem parecer melhores e aceitáveis para suprir uma superficialidade abjeta. E somente depois de muita dor e sofrimento essas expressões veem à tona como último recurso de amor próprio e desprendimento, vindo de um lugar onde não mais existe amor e afeto, apenas espinhos e cicatrizes. Um solo infértil. Uma delas, cunhada pelo tempo, pela falta de amor e por sentimentos elevados rebaixados à ridic...

Um caminho, um caminhante

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Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Arquivo Pessoal. Andar por lugares conhecidos com o coração leve e a alma tranquila requer coragem - uma coragem audaz e forte. Nesses caminhos de lembranças, risos e superações estão as marcas que ferem e sangram a cada passo. Estão, nas cores, nas casas, nos transeuntes, as formas de uma vida anterior propositadamente desprezada e destruída pela mesquinhez da deslealdade e da falta de verdade. As dores do caminho são resistentes e frequentemente inatacáveis. Dores que mancham a beleza das fotografias, das lembranças intangíveis, dos estados de espírito. O caminho é o mesmo. As aparências são as mesmas. Os sentimentos, ofendidos, são os mesmos. O caminhante não é o mesmo. E nunca mais será.

O amargor da ilusão

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Foto: Av. Josino José de Almeida. Aju-SE. Rafael Rodrigo Marajá. Alguns sacrifícios são feitos por falta de escolha enquanto outros são feitos por necessidades. Ambos, no entanto, podem estar sob uma ilusão que movimenta a vida e promove o sucesso. O problema dessa ilusão é que outras pessoas se aproveitam dela para subjugar quem está no jogo da vida para o que der e vier. E, nesse caso, a maldade alheia não encontra limite algum. Humilha, trai, mente, engana, calunia, usurpa sentimentos e suga toda a vida com interesses mesquinhos. Não há segurança na toxicidade de uma ilusão manipulada pela perversidade. E quando o veneno escorre de falsos amores, falsos amigos, falsas motivações a ilusão, antes doce, torna-se amarga. O sol de todos os dias aquece outras ilusões e ofende tantas e diversas desilusões. O amargor continua ali e nada, a não ser a própria consciência, é capaz de processar e expelir a dose amarga de veneno. O caminho ensolarado e belo continua existindo como de...

Pós-cotidiano

Hoje minha vizinha resolveu cantar uma linda canção.  Sua voz, assim como a minha, não foi talhada para o canto e mesmo assim  lá estava ela, cantando e cantando sempre mais alto. Lá fora, na rua, entre mortos e famintos, a música popular enche o vazio que existe nas tardes de pandemia e tenta traduzir o silêncio das consciências. Eu apenas ouço de um lado e de outro. Ouço e tento não tomar os venenos que tentam me empurrar. E tentam muito. Porque chega um dia em que dirão que você é insuficiente e que sua vida, seus feitos, suas tentativas não passam de incômodos. Farão você acreditar que merece o desprezo, a mentira, a infidelidade e a covardia. Imputarão a você erros alheios, deficiências de caráter desconexas da realidade. Tentarão reduzi-lo a apenas satisfação sexual, impressões em redes sociais e vãs ilusões. Mas é preciso que você entenda que o mau-caratismo não é culpa sua. Que seu código de ética e de moral não estão equivocados se não prefere a autodestruição. Você p...

Ontem chove hoje

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Está chovendo e meu corpo está salgado. Meu corpo está fechado. E minha mente está sob um rígido estado de alerta. Os sons do desespero, que vagam pela rua, silenciaram E todos ouvem as gotas da chuva bater no telhado. Está chovendo e não há tristezas. Covas rasas serão expostas. Corações rasos serão estraçalhados. E vãs ilusões serão feridas. A chuva aumenta o tom. A minha voz é mais baixa que o rugido da chuva. A minha importância é menor que a umidade de agora. A minha vida é uma gota de uma chuva de vidas. E tudo é tão pequeno lá fora. E tão grande cá dentro. Chove. Escorre o ontem em calhas. E o hoje é molhado. E a chuva, depois da limpeza de almas e casas, Se vai.

O mar do Farol

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Foto: Por do sol no Farol da Barra. Salvador-BA. Rafael Rodrigo Marajá. Quando sentei à beira mar, sob a sombra do Farol da Barra, eu não estava só. Eu nunca estive sozinho.  As ondas do mar vindo em minha direção refletiam o sol do fim de tarde e minha vida misturava-se às dos desconhecidas à minha volta. Amigos, amantes, indecisos - todos parados olhando o mal que escondia o sol e descarregava angústias, sofrimentos, intrigas, maledicências, traições, desonestidade. O mar, casa de grande mãe, limpava nossas mentes e acalmava nosso coração enquanto a vida, longe de sua influência, seguia recortada por mal-quereres diversos. E tudo estava bem.  Fixo no chão, como se tivesse criado raízes, meus pés seguiam firmes ao chão, ao mar, à grande mãe. Meus olhos contemplavam o além e o mais longe - avistando a terra de Ayocá. E minha mente, essa mente resistente e preciosa, acalmada e silenciada, entendia o que o Pequeno Príncipe entendeu. E quis conversar com ele, ali mesm...

Mulher Independente III

Chegou, como sempre, independente de sua autoestima, com a boceta lacerada e o cu esporrado pelo chefe. Em uma empresa que a ascensão depende de quem agrada analmente o chefe imediato e tendo uma disposição natural para piscar as pregas, a Mulher Independente e bem resolvida está se saindo muito bem. Agora a promoção chega? Em casa, rejeitada por quem deveria desejá-la, sua boceta pisca e se revolta vendo-o mastubar-se madrugada adentro sem ao menos tocá-la. E implora por sentir a rola de quem regozija em trair, enganar e mentir.  Ignorada, vendo a rola dura, molhou-se. Encharcou-se e a vida mostrou-lhe que desdenhar a rola tantas vezes mamada, quicada, punhetada é um caminho perigoso. Quando abriu as pernas, mais uma vez desde o cisma, seu cio escorreu por entre pernas e colchão. O desejo por rola, mesmo não sendo por aquele macho específico, é latente e transforma-a em rameira de quinta, que o cu não lhe serve e a boca é antro de dejetos. O macho virou-lhe a cara, meteu-lhe a rol...

Crônica de uma vida insuficiente XXVI

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Quando eu fui embora o tempo fechou. Ventos e gotas inclinadas de chuva molhavam a roupa estendida no varal. O vizinho, pela primeira vez desde que o conhecia, assistia a um show de Maria Bethânia e Gita foi a trilha sonora das minhas malas. Para trás ficaram sonhos e planos abortados. Para trás ficaram olhos e alma em corpo felino, cujo amor eu sei ser sincero. Para trás ficou uma carapaça amada. O trânsito, a chuva, o peso das malas e a sensação de liberdade pavimentaram a estrada que o ônibus percorreu. Eu fui embora sob aplausos de quem o desamor transformou em desprezível. E agora resta seguir em frente, falido e do zero. Quando eu fui embora eu já tinha ido há dias.