A tirania do calendário
As datas não mentem. Elas são mudas, surdas, mas não cegas, não
esquecidas, nãos insanas. A numerologia do calendário guarda a corrente vital
que passa por nós e leva entes, ela, ele, nós, vós, aquilo, tudo. Leva o querer
que não era pensando em outro momento. Leva. Apenas.
Quantas dezenas, ou unidades, ficaram gravadas na mente e na insônia quando
o resto apagou-se em meio àquelas explicações desnecessárias que queria, ou que
inventou. Há de lembrar-se, você que pensa que voa, mas sequer tira os pés do
chão, da realidade, da feiúra do mundo sem verdadeiras entregas?
Não. Certamente ninguém se lembra de promessas que foram feitas em uma
época em que o degelo das calotas não tinha tornado gélido esse coração que
finge pulsar. E, evidentemente, não lembrará das desfatezes cometidas sem
medidas, da brutalidade do silêncio imposto, da gratuidade com que comprou a indiferença,
cujo caminho foi regado com as lágrimas que um dia jurou não fazer derramar.
Não. É claro que não lembrará.
O calendário não olha para trás, não conclama, à revelia da corrente
vital, que se olhe para trás. Mas um dia você olhará. E, de tão profunda que será
a visão, terá uma vertigem seguida de uma gargalhada, esta seguida de umas
lágrimas repentinas. Então, do nada mais que uma tristeza sem nome, você
recorrerá às datas e à hora e não saberá se é dia ou noite, tarde ou cedo
demais, vida ou morte. Não saberá dos passos que te guiaram na bruma da dúvida.
Não terá a certeza se o coração alheio cultiva aquele amor, ou a indiferença
que tanto lutou para obter. Não saberá!
Terá que ir buscar, onde deixou, sua parte preciosa. Terá que parar de
fingir novos ventos. Terá que deixar de lado o orgulho. Terá que voltar atrás. Mas
não se engane: lágrimas não voltam aos olhos, confiança não tem suas rachaduras
vedadas com ouro – como fazem os orientais com a porcelana quebrada. Não
esqueça que suas escolhas fizeram seu caminho, sua dor, sua tristeza, seu
sorriso efêmero. E tudo isso se aplica a outrem.
Quando voltar ao ponto colapsado, tenha certeza que não encontrará
ninguém Apenas o passado. O presente, futuro desse passado, estará sob seu
olhar e seus pés terão que correr, sua garganta terá que gritar o mais alto que
puder e suas mãos precisaram estar buscando o abraço que teve. De repente, se
verdadeiramente houver esforço e real desejo, encontrará o que busca e, frente
ao ser, tenha coragem. Tenha medo. Tenha receio. Tenha em si o seu eu que caiu
no canto da estrada.
Haverá compreensão. O resto, bem, isso só os dois poderão construir.
E, sem a vergonha do exercício da tirania sempre imposta, o calendário
vai prosseguir. Em outro dia, em outra hora, há de perceber o que fez, o que
não devia ter feito e a vergonha de ter complicado poderá fazer com que sinta
remorso ou não... caberá do hoje que começa agora.
Você pediu e eu já vou daqui - Nando Reis e os Infernais
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