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Numerografados

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  Arte: "Trotting Cracks" at the Forge, Currier & Ives. Met. Somos números. Documentos pessoas nos tornam frios algarismos. O sistema de educação e de saúde nos torna índices - meros números que são passíveis de interpretação. O mercado financeiro nos transforma em cifrões que devem ser empilhados para demonstrar o quão rico e importante é um certo indivíduo ou organização. No fim, nada mais que números.  Entre um sistema de classificação e interpretação e outro, comemos, sorrimos, choramos, enterramos outros números, parimos outros tantos e fazemos a máquina movimentar as telas concretas de um mundo apenas abstrato. Sendo números, embora com sangue esquentado pelo calor dos trópicos, é dito inadmissível que queiramos mais, nem é muito, apenas um pouco mais.  A recusa em ser apenas máquinas que sangram nos faz cair no desprezo dos donos do capital. E é somente essa recusa que nos mantém vivos, apesar de toda a estrutura de escravização moderna que nos mantém...

O lado certo para o bezerro de barro pintado de amarelo

 6h49 da manhã. As portas da IURD já estão abertas com obreiros recebendo as ignorantes ovelhas com um recipiente nas mãos para o ritual vazio da manhã de domingo. As ovelhas, pobres, ignorantes, desesperadas, chegam de todos os lados para sustentar a vaidade dos pastores e idolatrar um bezerro de barro pintado de amarelo que chamam de deus.  Um deus que apresenta uma masculinidade frágil, tóxica, violenta e opressora. Esse mesmo deus que visita os ricos em seus leitos enfermos, mas ignora e despreza os pobres nas filas dos hospitais públicos. Para o rico, esse falso e inexistente deus acolhe, aconchega e visita em sonhos, garantindo a cura, os milagres e a assistência irrestrita. Para o pobre, mesmo que este dê-lhe tudo o que possui e que nunca é suficiente, esse deus os esquece e os oprimi transferindo-lhes as enfermidades que retira dos ricos. Um deus com a cara dos servos - quem paga mais consegue a cura, a paz, o lugar reservado em um pseudo paraíso.  Essas ovelhas, ...

Breves linhas periféricas

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Arte: View of the Brenta, near Dolo, Giambattista Cimaroli. Met.  Na periferia, na praça esquecida pelo poder público, dois times concorrentes formados por moradores locais distraem transeuntes e os próprios jogadores dos acontecimentos tediosos que estão prestes a serem reiniciados pela rotina do trabalhador brasileiro . Os pontos comerciais começam a abrir e empregados do varejo, sentados à porta dos estabelecimentos esperam o tempo de humilhação regimentar que caracteriza a diferença entre patrões e empregados.  Nas ruas, sacolas de lixo esperam ser recolhidas e animais abandonados aguardam a cota de ração doada pelo pet shop local. A vida periférica parece ser a mesma, sempre: trabalhadores indo ao trabalho bem cedo, comerciantes humilhando os trabalhadores, velhos se preparando para o culto e ruas sujas. Observando de longe, é um local vulgar, sujo e que serve de depósito para pobres.  Nas regiões "nobres", as padarias são delicatéssen , os empregados não s...

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

  O filme Maníaco do Parque tem levantado um muro de críticas daqueles que, normalmente, vivem sob o ofuscamento dos holofotes das produções estrangeiras. Há quem diga que a produção é rasa, há quem critique a contextualização de uma personagem fictícia e simbólica e há quem critique a falta de sangue e de violência explícita.  No fundo, o que se critica é a falta de carnificina, o cheiro do medo, o sangue enquadrado, os gritos de horror. E essas críticas derivam do fato de que vivemos à procura de carne apodrecida para satisfazer as nossas tão humanas necessidades de deleite sobre a desgraça do outro uma vez que não podemos, geralmente por força da lei, realizar os mesmos atos.  Maníaco do Parque, o filme, não possui as reviravoltas de criativos roteiristas que sempre encontram uma maneira de tornar as histórias mais vendáveis. Nem possui a assinatura estrangeira que daria, aos vira-latas de plantão, o sabor de uma "boa obra", mesmo que essa tal "boa obra" não pass...

Carta a um ausente XIX

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Arte: Portia, Sir John Everett Millais. Met.   Agora você não acredita, mas me parece que os seus esforços são insuficientes para ser o que pensou há alguns anos. É bem verdade que seu caminho acaba em mim quando se trata de pedir caminhos viáveis. E só.  Um dia, talvez quando estiver olhando o mar verde dessa cidade inquieta e malcheirosa, caia-lhe o pensamento na calçada e perceba que, até agora, muito pouca coisa tem importância e que, aquela você de outrora chora ainda em um quarto escuro com medo de ser reprovada por um círculo social ingrato e injusto. Olhando assim, de longe, parece que eu me perdi e não saiba muito bem o que estou fazendo de uma vida que caminha em direção ao Portão do Inferno, sempre olhando para o abismo real que suga almas sem esperanças. Talvez, de fora, tenha alguma razão. Afinal, a vida é para ser gasta.  É por isso que olho para você e percebo que a beleza que já vi sob o sol de agosto parece estar murchando com o peso de tantos p...

Crônica de uma vida insuficiente XXVIII

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Arte: Lion Sleeping, Antoine-Louis Barye. Met.   Mesmo tentando, olhando para a esquerda quando a paisagem da direita há dores imensas coletivas, não há como ignorar o tamanho do abandono em que vivemos.  Comemos o suficiente para não morrermos de fome e desempenhar essas atividades insalubres e com baixa remuneração. Não comemos, enchemos a barriga com plásticos, papelão, vidro, agrotóxico, venenos diversos. Pesados, saímos para sustentar o giro do capitalismo que nos nega o básico para sermos pessoas.  E, cansados, ao tentar dormir, não conseguimos porque nossa carência nos insufla a ir buscar aprovação em redes sociais, jogos de azar, ódio políticos e discórdias sociais, mesmo que, ao lado, roncando devido à gordura de uma alimentação ruim, haja uma pessoa que diz que nos apoia. Amores, perdidos pelo medo de não sermos nada além de pessoas, já não existem mais.  Aliás, será que chegamos mesmo a "amar" ou deliramos tentando não nos sentir sozinhos? Não, é...

Declaração vivificante

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 Foto Foto: Osiride statue of Senwosret I.Middle Kingdom. Met   Maria Bethânia canta  "Com todas as palavras Feitas pra humilhar Nos afagamos" E a madrugada, por mim, através de mim, sobre mim, escreveu uma petição digna de doutores advogados do tipo que não se formam mais em universidades, por obra e graça de redes sociais abstratas.  A cerveja segue gelada. O condicionador de ar segue tentando resistir ao ar quente da boca do inferno aberta no centro do Brasil. E eu sigo sendo o príncipe negro fruto de relações divinas de deuses negros, protegido por guardiões velhos e sábios. Caminhando no precipício de viver na borda de um mundo insone.  Eu sigo sendo um em uma multidão de iguais, tentando não ser igual, sobrevivendo ao absurdo de ser só mais um.  O futuro é a morte. E eu sou o incesto entre a morte e a vida. Eu sou a base, a coroa, o pó, o cume, o bandido, o herói, o Cão, o Deus.  E ninguém entende isso.  Elas passam, se benzem e se...