Carta a um ausente XIX

Arte: Portia, Sir John Everett Millais. Met. 

 Agora você não acredita, mas me parece que os seus esforços são insuficientes para ser o que pensou há alguns anos. É bem verdade que seu caminho acaba em mim quando se trata de pedir caminhos viáveis. E só. 

Um dia, talvez quando estiver olhando o mar verde dessa cidade inquieta e malcheirosa, caia-lhe o pensamento na calçada e perceba que, até agora, muito pouca coisa tem importância e que, aquela você de outrora chora ainda em um quarto escuro com medo de ser reprovada por um círculo social ingrato e injusto.

Olhando assim, de longe, parece que eu me perdi e não saiba muito bem o que estou fazendo de uma vida que caminha em direção ao Portão do Inferno, sempre olhando para o abismo real que suga almas sem esperanças. Talvez, de fora, tenha alguma razão. Afinal, a vida é para ser gasta. 

É por isso que olho para você e percebo que a beleza que já vi sob o sol de agosto parece estar murchando com o peso de tantos preconceitos criados, imaginados e alimentados por um estado de ser que não vale a pena. Sob aquele sol de fim de inverno, que combina tanto com seu sorriso largo e olhos úmidos, você ficou. 

Sim, ficou.

Sentada, com o vento balançando seus cabelos e os jamineiros floreando em tons de branco e rosa o reflexo dos seus olhos grandes. Ali você permanece em dias alegres, quando o sol castiga os seus sonhos e o cheiro da chuva para ser um delírio. Ali você sempre será o vulcão de sentimentos e ousadias. Ali, separados também, ainda somos dois desconhecidos. 

No quarto, quando todos agora desaparecem e você se vê como é, nem tão frágil e nem tão forte, seus sonhos pululam sobre a cama, atrás da porta, da tela dos aparelhos, dos seus olhos para as suas mãos, do seu ser para o mundo. E a noite parece ser tão pequena, tão fugaz, tão diferente. No escuro desse quarto você se vê como é e percebe que, se não fosse o medo de ser quem gostaria...

E balança a cabeça, tira o cabelo do rosto, seca as lágrimas e pensa que tudo poderia ser como é, mas com mais carinho, com menos cobranças, com mais sorrisos, sem tantas amarras. Sim, imagina-se batendo o pé caminhando para lá e para cá e gostaria de fazer o que eu faço, apesar de todo o julgamento. 

Agora, cansada, entre sorrisos religiosamente remunerados e amores convenientes, você está se deixando ir, movida pelo orgulho, pela necessidade das comparações, por motivos desnecessários. 

Por enquanto, opostos mais do que nunca, ainda somos desconhecidos depois de um breve momento. 


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