A vida e a Sereia
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Foto: imagem da internet |
A vida é um rio de verdades e mentiras tão bem contadas que juntas formam um conjunto uno do qual atribuímos nossas conquistas e ressentimentos. É um rio de afluentes podres e desprezíveis habitado por todo elemento dúbil de um universo ora detestável ora dócil, mas que nos levam a um oceano de incertezas cuja única qualidade é a sua própria existência. Águas que me levaram durante uma vida a todos os caminhos decadentes possíveis, mas que sempre me fizeram sentir vivo.
Naveguei por estradas de barro e lama em muitos carnavais procurando uma razão de viver e de exprimir em sua totalidade o meu ódio e o meu prazer de ter prazer em estar vivo, os vícios e as minhas desilusões preconceituando devaneios de uma juventude precoce e o ônus de uma velhice anunciada pelo tempo. Calejei esse espírito com amores odiáveis de tanto amáveis, que, entre orgasmos de realidade arremetiam-me em um crepúsculo de irreverência de uns tantos sexos desprazeirosos que acomete os elementos humanos e que depois de tantas experiências eloquentementes absurdas vi-me suspenso, no tempo das minhas rugas, sobre uma lágrima que descia sofregante sobre a epiderme do meu rosto enquanto o sol queimava o resto de um velho-novo corpo jogado à rocha de um lugar qualquer.
Pode parecer que o exagero tenha abatido os últimos resquícios de humanidade que havia ainda em mim, mas nunca poderei expressar, por palavras ou por sentimentos, o nojo que tive por mim mesmo, pelo outro e pelo que vi no auge da minha juventude transviada. Agora, sob o céu de uma criação monumental encontrava-me ainda vivo jogado ao chão rochoso de uma praia perdida numa cidadezinha qualquer de interior costeiro.
Era uma amanhecer de inverno nos trópicos de todos os ritmos, cor e forma, terra de desigualdade tão igual que a própria guerra constrangia-se em aparecer na urbanidade de uma terra perfeita em sua imperfeição. O Sol fazia-se preguiçoso em banhar os santos do cruzeiro do sul, o cheiro da terra detinha-se ao simples limite da imaginação dos serventes da natureza e a luz do novo dia já incomodava as pálpebras cansadas do escuro de um velho homem, que no ímpeto de sua cor não mais procurava prazeres terrenos.
A orla era banhada pela sujeira humana advinda de todos os recônditos lugares da terra dos canarinhos e desse planeta azul-marinho-sujo. As palmeiras eram jogadas de um para outro lado pela brisa da manhã de um dia de inverno quente nas praias verdes do cone sul do novo mundo. Nessas terras tropicais, temos hoje a ressonância de uma revolta climática que me fez tremer até este dia. Nunca me esquecerei desse dia maravilhoso que atravessou o tempo quebrando a cronologia de um calendário errôneo e egocêntrico.
Nas batidas compassadas de pálpebras tão casadas percebi, nesse dia, que viver é perigoso, mas não viver é ressentir a morte de sentimentos jamais sentidos, de acontecimentos nunca acontecidos, de amores já vividos. Nesse momento, compreendi o que a filosofia e religião já sabiam: nascemos sob o domínio de uma estrutura de preceitos e despeitos que irracionalmente seguimos e vivendo sob essa égide somos aparentemente felizes. A mulher sente-se feliz por fazer do seu instrumento de vida um modelo repugnante e ditatorial seguido por grande parte do gênero, o homem não tem outro objetivo senão o de enriquecer e as crianças, coitadas, acalentam-se por saber que inevitavelmente irão crescer. Tudo isso para um dia saber que a morte não espera pela beleza e tampouco pelo vil metal do inferno. Enquanto vagava nesses sonhos reais de filosofia e inquietude foi subitamente acometido do pior dos males da alma: a saudade, sentimento possesso e irremediavelmente confuso e opressor da razão e da emoção de um homem em declínio. Fosse eu a encarnação de um deus do Egito traria de volta a insensatez de não pensar na vida, no fim e no começo, de tudo e de todo o seu fim.
Essa saudade mata-me de ânsia pelo passado e pelo que, um dia, foi a minha grande paixão. Ela é o hélio elevante da percepção e da sensibilidade de um espírito fundente no álcool e na droga de vida que se podem ter quando se ama. A minha amada cabe apenas o papel coadjuvante de atriz de primeira grandeza no meu show de horrores particular. O meu público usurpou a minha agnóstica paciência derrubando por terra todas as minhas chances de viver um papel ilusório no palco da vida.
A fantasia deixou a realidade ocupar a cena enquanto eu tornava o mundo mais preto e branco, criei um museu particular e perverso cultuado pela sociedade e pela emoção sarcástica do existir imundo desses homens que hoje me veem ao lixo de uma praia imbecil numa situação de pura ignorância catastrófica. Os ratos levaram o resto de sabedoria que me restava e agora só os peixes me chamam do fundo de suas escamas putrefatas.
De cima da rocha empoeirada em que me encontrava gritei a toda hipocrisia que passava por mim naquele instante, clamando por uma mão que me abrisse o ‘’bis’’ de um refrão mal cantado e pessimamente gostado pelos passos que escorraçavam as palavras de um coitado empobrecido pela estrutura societária vigente.
O meu retrato foi desenhado pelo prazer de ter vivido muitos amores, odiado o infinito e pelo simples ato de viver contra a corrente de dissabores de um oceano de peixes podres excludentes e reincidentes no palco da vida. A fantasia de viver narcisivamente foi à melhor saída da realidade que me vivifica hoje, mas o meu show ainda não tinha acabado.
O meu amor sumiu em meio às mudanças desse corpo e o espetáculo acabou sem os aplausos, sem risos, sem a altivez de um grande espetáculo. Os vermes que me criaram foram os mesmos que tiraram a minha razão de estar neste pêndulo vitalício de desgosto e de prazeres insólitos do interior da capacidade intelectual humana. As novidades terminaram antes mesmo de começar e o único ouvinte que tenho agora é apenas um velho e covarde navegante de águas semelhantes que sobreviveu aos rumos das ondas reversas dos rios.
Depois de tantos naufrágios o meu grande amor é a loucura de curvas inimagináveis de fantasias absolutistas do culto popular, a minha trilha sonora é um chorinho de voluptuosa alegria incapaz de vivificar um mendigo do futuro, um metodista do passado e um ancião do além-mar. Naquele dia, juntei-me a gama de entidades reinventadas pela geração do amanhã, que nunca existe e que nunca chega jogado na primeira página do pior jornal sensacionalista da mediocridade.
O sol já queimava a epiderme da minha alma fantasiosa quando o cheiro da costa invadia o meu olfato surrado transformando a paisagem da areia branca e denunciando a vida fácil que levei até aquele momento. O bom e covarde navegante que insistia em aplaudir a minha decadente performance desbotou a caricatura do sol, que olhando para o mar petrificou-se, e, eu descabidamente parei a inatividade de uma morte anunciada.
De repente, de dentro da água começou a surgir uma figura intrigante e intimamente prazerosa, seu rosto desenhado no mais puro mármore de Atlântida torneava um quadro extrínseco de dúvida e cautela. O seu corpo desbancava todas as paixões que tivera em minha farta experiência de vida. Orfeu declinaria sua altivez diante dessa entidade sombria que agora se tornava o objeto de desejo deste suprimido indivíduo e do bom navegante.
Suas curvas desenhavam um corpo nu em meio ao mar de roupa e etiquetas, seus cabelos, beijados suavemente pelas ondas marítimas transformavam a continental idade do cruzeiro do sul em mera idolatria patriótica. Seus olhos dilaceravam os corpos dos expectadores que lentamente expunham seus desejos mais estranhos, gritando-os repetidamente aos ventos do litoral. Indiferente a tudo isso, a entidade, que vulgarmente chamaram de sereia, esbanjava sobre mim ciclones de ternura, amor e prazer.
Sua composição corporal despertou diferentes sentimentos nos apreciadores de aberrações, que já se organizavam em uma empreitada para capturá-la. Embora sua exuberância tentasse a minha índole não poderia esquecer que Ela poderia não ser real. Essa novidade atormentou intensamente o meu instinto a tal ponto de me levar ao mar onde estava. A vida, no entanto, não deixaria o ato se consumado para mera satisfação própria.
Interrompido pelo covarde navegante, tive que me conter apenas em ver aquela verdadeira beldade de corpo e alma. O meu expectador particular, entretanto, fazia planos canibais para o futuro dessa fantasiosa figura. A capacidade humana levara esse indivíduo a desejar provar sua carne, o seu sangue, a dissecá-la a bel prazer insalubre. Se os estudiosos da psique humana soubesse o que é realmente o bicho-homem atentaria à sua própria extinção.
Desejos libidinosos conflitavam com os gulosos a tal ponto que a vida de astro e platéia não significava mais nada além da vitória aparente de comer ou possuir. Depois de tudo que já havia experimentado em toda a minha desgraçada vida, essa seria a mais imprescindível, além de última, das experiências teria enquanto mortal. Ainda abalado pela manifestação de desejo daquele desgraçado navegante, atirei-me ao encontro da bela entidade.
A voracidade do movimento estendeu todo o litoral desencadeando um confronto mortal entre os adoradores da carne e os adoradores da alma. A ferocidade desse espetáculo continuou por horas até restasse o último para respirar aliviado o sabor da vitória e o prêmio de uma eternidade. Estava entre os últimos e o que via não era o mais agradável que um homem pode presenciar em toda a sua existência. Corpos atirados à areia branca da praia misturando-os às conchas, às pegadas dos combatentes e à areia que em outrora iluminava um quadro de pura satisfação.
A entidade gesticulava a aprovação da cena motivando o último espetáculo dos desgraçados ali mortos. A água não mais cheirava mal, pois o sangue que escorria dos corpos inibia o cheiro putrefato da água. Eu, ofegante ainda com sangue em minhas mãos e cortes em todos os lugares possíveis, continuava a almejar o produto de tão sangrenta batalha. Restaram apenas dois elementos nesse palco improvisado: o navegante e eu, o primeiro agora não tão covarde e o segundo não mais decadente quanto antes. Os olhares entrelaçaram-se com ódio e certeza da vitória, contudo, o futuro próximo guardava mais uma novidade indissolúvel dessa comédia melancólica.
O majestoso céu da criação enegrecia ante a fome de poder e volúpia dos dois personagens imponentes da praia da terra do cruzeiro do sul. Os signos do zodíaco aplaudiam os seus apadrinhados enquanto os animais dilaceravam as vísceras da vida no tempo de sua encarnação final. O gosto e o cheiro do peixe-homem onipresenciava o penúltimo ato desse afluente errôneo.
A fantasia não fugia mais à realidade do momento tornado a perspectiva de reflexão uma terceira figura sórdida dos mutantes de uma aquarela descolorida pelo espaço rubro desse desejo decadente. A evolução do momento foi interrompida pelo sarcástico sorriso da bela sereia em meio ao lixo humano da vulgaridade do ambiente.
O navegante caia por mar quando a sereia resolveu manifestar toda a sua beleza e altivez. A sombra dos coqueiros instigava-me a um profundo e sonolento passeio à beira-mar, quando surpreendentemente a sereia, em gênero e descabida formosura, desembocou na branca areia da sangrenta praia com o intuito único de resguarda o vencedor de tão penosa batalha.
Entre olhos vermelhos pelo sol da manhã e os membros inferiores feridos pela vaga lembrança das cenas horríveis que tive o desprazer de presenciar e participar em toda a sua formação, sendo o co-agitador do ferro e das hemácias do sangue dos meus adversários. Agora, a alguns metros de distância do meu prêmio, que, a essa altura já não mais parecia atraente e inovador, percebi um detalhe do qual não havia atentado antes: a bela sereia provocara todos os passeantes a fim de incitá-los a brigas descabidas só para o seu prazer.
Seus olhos, por outro lado, me passavam a libertinagem de uma noite mal dormida enquanto que seu corpo desprovia-se de toda fantasia outrora desejada e eu, em toda a minha ilusória desilusão, debruçava-me aos poucos em seus braços de deusa da ilusão buscando em seu corpo uma vitória conquistada, uma razão de ter estado todo esse tempo numa esdrúxula praia de lugar nenhum.
A essa altura a preocupação com o passado perturbava-me, mas não o suficiente para atirar-me ao mar a procura de um mundo nunca existido, nunca descoberto, somente quimeroso onde habitara tantas outras sereis. Enquanto a natureza insistia em chamar-me para o fundo da vala aquática, parei, pensei com o resto de inteligência que me restara e mandei para o inferno toda beleza de uma libidinosa espécie qualquer que, depois de tanto me fazer sofre, voltara do ponto de partida do fim do caminho para levar esse corpo aos confins do mundo subaquático.
Ainda com a maré empurrando meus joelhos para fora da água daquele imundo oceano, também inferno frio, agarrei nos cabelos da dissimulada sereia e mostrei-a como se chega ao decadente estado de humanidade. Fiz-la saborear a humanidade nunca vista antes nem mesmo pelos próprios humanos, gastando-lhe suas escamas nas rubras pedras da mesma praia que corpos atiraram-se à morte.
Mostrei-lhe por meio de atos a verdadeira face de uma entidade. Sim, de uma entidade demoníaca que em outros tempos despencou do vazio caindo sem medo e sem testemunhas na terra das diferenças. Dei-lhe o último beijo de ternura e de sua vida, atirei-a sobre os arpões do velho navegante, que ainda gemia sobre a água do cenário, parti-lhe sua humanidade vencendo o seu instinto e desmembrando para todo o sempre a morte nas águas.
Ao seu corpo restou a mesa dos curiosos que aplaudiam a última cena da comédia da vida. O velho navegante sobreviveu, ainda que saudoso do seu objeto de desejo. A mim sobrou a morte anunciada pelo peso da idade de um homem acabado pelas leis dos outros homens.
Agora essa psicografia é delineada pela mesma mão que feri em outrora e você, caro leitor, não se esqueça que um dia, do fundo do seu coração irá surgir um amor avassalador que ao terminar trará a sua destruição e uma visão, semelhante à minha, irá descobrir-lhe o além-terra deixando-o no céu desconhecido ou no inferno aparente. Não se apresse em ter fome, quando você menos esperar o tempo trará o seu alimento e você despejá-lo-á pelo córrego que passa.
Viva o hoje, porque o terreno do amanhã é tão infértil que somente as novidades poderão decidir se os rios do seu mar o encherão de satisfação e esperança. Quando decidir acabar a sua viagem não deixe que as fantasias verdadeiras acabem com o seu futuro no oceano.
Bom, eu acabei sucumbindo na mesma praia em que matei meus companheiros de desejo, atirado às ondas do esgoto azul que chamam de oceano. E neste momento, sou o nada e nada deixei, pois se ter é tão importante quanto pensei, não deixei o que valia a pena lembrar.
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