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A visita da morte em Umbaúba

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A vida, sempre efêmera, não pode ser vivida com dignidade e, no curso natural dos eventos, não há morte com dignidade, por mais que tentemos nos enganar. Essa morta, insidiosa, está sempre pronta para levar os vivos em cada vão momento. Sorte de quem pode escolher como e quando morrer; quem não pode, por outro lado, acaba sendo vítima dos caprichos dessa dama invisível. Ontem mesmo, em Umbaúba, aquela cidade em que a Polícia Rodoviária Federal torturou e matou um brasileiro negro à luz do dia como prática de perpetuação do racismo e da divisão de classes, foi palco de um desses caprichos.  Vindo de direções opostas, na pressa de um sábado atribulado, duas motocicletas colidiram levando um condutor, cigano, a óbito. O outro condutor, tentando viver, foi assassinado pelos parentes do já extinto motocondutor como forma de retaliação. Ciganos, os assassinos, foi o que disseram e, pelo que corre nos grupos de aplicativos de mensagens instantâneas, é que esses ciganos já possuem certo do...

Todos os caminhos

Todos esses caminhos que cortam montanhas e atravessam rios são também meus caminhos, com sombra, com sol a pino, sem pousada à vista, sem muito o que ver. Sempre a pé, percorrendo esses caminhos hostis em sua natureza, vou seguindo. E paro para descansar em avassalador desalento por não ter para onde ir e chegar.  Sempre a pé, confirmo a minha desolação de caminhar em um mundo que não me abriga nem me apaixona. Meu ódio derreteu sob o céu do verão e amores, sempre pueris, desfizeram-se no orvalho. Eu sigo caminhando, cada vez mais devagar.  Um dia, eu sei, eu finalmente vou parar. Não será hoje, eu sei.  Hoje eu continuo caminhando com pesos que me entristecem a face ainda ingênua do meu ser.  Hoje, ainda, eu continuo por esses caminhos, a pé, carregando esses pesos que não se deixam ficar.  

Sempre esquecemos o mais importante

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Aquela sensação de esquecimento vai corroendo as bordas da empolgação como um ácido fraco e persistente que foge do encapsulamento pseudo seguro.  Pensamos que esquecemos de fechar a válvula do gás, apagar a luz, trancar a porta, guardar a comida na geladeira, fechar todos os registros.  Que bobagem crer que não vamos esquecer de nada e acabamos esquecendo sempre as coisas mais importantes e, por isso mesmo, as mais bobas.  Esquecemos até do tempo, esse mesmo tempo que fingimos apreendê-lo em relógios, smartphones, números em agendas e, no auge de nossa pretensão, em fotografias e vídeos. Esquecemo-nos dele e ele jamais nos esquece.  Na rodoviária o rapaz passou correndo, um foguete em meio à babel de caixas, cores, pessoas e emoções, para não perder o ônibus que acabara de fechar a porta. O tempo não espera por ninguém. O motorista, imitando esse Deus implacável, também não espera, embora pudesse e devesse, em nome do bom atendimento ao cliente.  O ...

Na altura de Paiaiá

Nesse pedaço de chão, observando passivamente as casinhas perdidas e os caminhos de terra, sinto-me um retirante em busca da fé, como aconteceu não muito longe daqui e que hoje é só água. A noite começa a cair e o mundo tem aquele tom colorido que não sabemos descrever e que, por falta de expressão melhor, chamamos de melancólico. Dependendo de quem olha, o pasto se cobrindo de noite que vejo pode ser uma seara mística e ritualística como também pode ser lacrimoso cenário. A vida não é fácil - para mim que não tenho paradeiro; para esse povo que só conhece o sol e as duras mãos do poder; para você que vive tão longe de si. Para onde vou ninguém me espera. Por isso a pressa não está em minha bagagem e por mais que eu me atormente com a minha histórica pobreza material, há uma dormência onde nada tem importância e eu, sendo também o próprio nada, entendo a minha importância em cada instante e em cada lugar. Linhas de transmissão de energia elétrica alimentam seus fios e botões e servem, ...

Sempre agrestes

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Foto: Rafael Rodrigo Marajá.  Meu bem, paisagens agrestes sempre lembrarão os dias de agosto quando um sol quente era abrandando pelo sopro frio das serras em terras tão distantes, embora igualmente agrestinas. Vi cactos espalhados e rebanhos pastando sem pressa.  Vi casas lindamente danificadas pelo tempo e que se mantém de pé por obra e graça da resistência que habita em seus moradores. Vi cidades de nomes estranhos e povos de olhares questionadores - somente o literalismo que em mim defeitua pode explicar a beleza irracional disso. Vi tudo isso. E sei que você viu também, nos dias em que fugia buscando o novo por essas bandas. E nem mesmo o tempo e a distância entre esse nordeste do nordeste e a Baía de Todos os Santos podem tirar palavras gravadas a ferro e fogo do intangível livro dessa existência - por isso estamos também aqui, e aí. Ora veja, fiz contas erradas e me senti em casa e confortável tão logo cheguei, como você disse uma vez sobre mim e todos os lu...

Em trânsito reverso

Parado em Estância. A cidade mãe continua sendo o ponto de parada obrigatório do qual nada me livra, nem mesmo minha pressa ou sono fingido. A luz da precária rodoviária fere meus olhos e abala a minha forçada necessidade de dormir. De novo, parece até que Belchior compõe ao meu lado, penso em uma rede branca e um cachorro (mas sem mulher companheira, eu mesmo me basto, de tantos e variadas formas).  Estou voltando, não para ficar, porque mais de 400 anos depois de fundada São Salvador merece algumas chances de superar velhas-recentes e pessoais arestas.  E mesmo correndo o risco de parecer um repetitivo e cansativo clichê preciso admitir que volto igual, mas não o mesmo. Tenho ideia do meus branquíssimos fios de cabelo; das minhas limitações físicas (mais orçamentárias) e das minhas superações (que muito aumentam meu valor de mercado).  Não tenho ideia, ainda, do que poderei me tornar se os eventos aleatórios da vida me fizerem retornar apenas com outro ano de diferença....