A poesia viva




Budismo Moderno
Tome, Dr., esta tesoura, e … corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Augusto dos Anjos


De muitas coisas os brasileiros podem se orgulhar! E dentre elas está a produção literária, patrimônio exclusivíssimo do Brasil, que ainda não foi, e acredito que não será, prostituído pelo estrangeirismo. Autores de porta de cadeia, de mesas de bares, de casas de prostituição, consagrados, anônimos, ascendentes, regionalistas, nacionais...São tantos os tipos de indivíduos que escrevem, independente da qualidade, pois todos acabam caindo no gosto popular de maneiras inusitadas e definitiva, que pode-se dizer que esta é uma nação de criativos escritores, embora nosso índice de leitura seja pouco. 
Abrindo o mundo literário e pegando apenas uma fração deste universo paralelo, temos, então, a poesia, definição da vida que corre na rua, do pingo de azeite sobre a imensidão do céu. A poesia tem seu dia nacional, hoje, e pode ser celebrada sem a mínima vergonha de existir! É através desse gênero que foram feitas as mais marcantes reivindicações do período ditatorial, pós-ditadura, democrático. Por ela são feitas as provas de amor declamadas eternamente por casais de todos os cantos do país, derramando-se sobre as terras mais secas, como as do sertão, até o litoral. Frequenta o pantanal com garbosidade e exprime tudo o que a humanidade tenta entender em dúvidas divertidas e descontraídas. É por meio da poesia que o mundo conheceu o Brasil, e ainda o reconhece. 
Seja declamada, escrita, cantada ou gesticulada, os poemas entram na vida de todas as pessoas, mesmo sem elas pedirem ou barrarem, como uma onda, fazendo pensar e refletir sobre a rotina cansada (ou não), sobre o amor perdido (ou achado), sobre as finanças caídas (ou levantadas pelo pregão da bolsa). Na poesia encontra-se o respaldo para a vida leve e tranquila, mesmo quando bloqueia-se todo pensamento humanista ou religioso.
Temos poemas científicos, que emprega termos estritamente técnicos da ciência médica, como os de Augusto dos Anjos, até poemas meigos, que trazem em suas entrelinhas as lutas do povo, como os de Cora Coralina. Dos autores a imortalidade, dos poemas a verdade da realidade posta em linhas poucas, quando não muitas em suas formas adicionais, são imensas em conselhos práticos, vividos sempre pelo poeta.
Leiamos poesia!
Recitemo-nas quando desejar, ou nunca recitemos. Aprendamos com ela a simplicidade do complexo traduzido em poucas e sábias palavras!


Segredo 


poesia é incomunicável. 
Fique torto no seu canto. 
Não ame. 

Ouço dizer que há tiroteio 
ao alcance do nosso corpo. 
É a revolução?o amor? 
Não diga nada. 

Tudo é possível, só eu impossível. 
O mar transborda de peixes. 
Há homens que andam no mar 
como se andassem na rua. 
Não conte. 

Suponha que um anjo de fogo 
varresse a face da terra 
e os homens sacrificados 
pedissem perdão. 
Não peça. 

Carlos Drummond de Andrade 


O poeta aprendiz

Ele era um menino

Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante.
Anos tinha dez
E asinhas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc.
O olhar verde-gaio
Parecia um raio
Para tangerina
Pião ou menina.
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
E caía exato
Como cai um gato.
No diabolô
Que bom jogador
Bilboquê então
Era plim e plão.
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava o mergulho
Sem fazer barulho.
No fundo do mar
Sabia encontrar
Estrelas, ouriços
E até deixa-dissos.
Às vezes nadava
Um mundo de água
E não era menino
Por nada mofino
Sendo que uma vez
Embolou com três.
Sua coleção
De achados do chão
Abundava em conchas
Botões, coisas tronchas
Seixos, caramujos
Marulhantes, cujos
Colocava ao ouvido
Com ar entendido
Rolhas, espoletas
E malacachetas
Cacos coloridos
E bolas de vidro
E dez pelo menos
Camisas-de-vênus.
Em gude de bilha
Era maravilha
E em bola de meia
Jogando de meia –
Direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar.
Amava era amar.
Amava sua ama
Nos jogos de cama
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Levadas e opimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder.
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita.
Por isso sofria.
Da melancolia
De sonhar o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser.


Vinicius de Moraes

Motivo
 
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

 Cecília Meireles


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