Postagens

Sem avisos

Um dia eu vou sumir, não aos poucos como uma fruta que se parte em pedaços e é engolida sem pretensão. Será de uma vez. Súbito. Não, não é estado de tristeza ou depressão que inflama essa afirmação. É um doce sabor de quem há de experimentar um arrebatamento cataclismico. De repente, não mais que de repente (como uma vez escreveu o poeta) eu sumirei em meio à multidão, sem ser notado, sem ser perturbado, sem alarde. E ficará, se alguém algum dia lembrar, como escreveu outro poeta, versos A um ausente. É só o que restará de mim pelas mãos de outro que me antecedeu. Um dia, eu sei, eu vou sumir.  E como não se destroi um império em um único dia, assim eu vou me fragmentando, acostumando os outros com pequenas ausências, silêncios enormes. E onde eu vou parar  ninguém sabe, nem eu, nem você, Olorum, de certeza, mas ele não vai contar. E vou viajar, como o Belchior fez duas vezes.

À francesa

Poucas sensações são tão boas quanto sair à francesa. Em um momento você está em uma empresa e, sem que ninguém se dê conta, você está rumando por outros caminhos. Em um instante você pode estar assistindo a uma aula presencial e, no outro, poderá está caminhando na orla sem que ninguém tenha percebido a mudança, além de você. Assim você poderá mudar de cidade, estado, profissão, relacionamentos tóxicos e destrutivos. Assim você poderá mudar, com ou sem medo. Sempre à francesa. Com requinte. Sem desgaste. Sempre em frente.

Trouxismo brasileiro

Há quem diga que o peso, da vida, seja mais leve quando é compartilhado. E pode ser que o peso seja mais fácil de carregar quando mais de uma pessoa faz a força necessária para levantá-lo e carregá-lo. Nunca vi isso acontecer, em nenhum, com  ninguém. E se nada é fácil para o brasileiro pobre, assalariado, menosprezado ainda que muito instruído, por que esperar que o peso de viver entre ruas sem saneamento básico e uma sobrevivência mal paga por empregos estafantes seja leve, ainda que compartilhada? Talvez o problema seja que aprendemos a romantizar a pobreza, as carências e a sobrevivência, crendo que sofrendo estaremos expurgando males dessa e de outras vidas. Uma ilusão conveniente para os donos do capital e de igrejas. Sozinhos, os brasileiros seguem o ritmo de suas reclamações sazonais, fazendo más escolhas, destruindo a si quando nada mais resta à fome implacável da destruição moral, material e espiritual. Quem sabe, em alguma coisa perdida no tempo e no espaço, o brasileiro...

Eu não sei

Como em tantas outras vezes, eu não sei. Simplesmente finjo saber de mim, encontrar-me entre tantas versões desorientadas e limitadas de mim é o meu desafio, mas eu não sei qual é a certa.  E embora o não possua uma conotação negativa, principalmente se repetida de tantas e diversas formas, nenhuma outra expressão é capaz de substituí-la. Eu, por outro lado, sou substituível, inexpressivo. Alimentos, notas, títulos, desejos, faltas, ausências, sentidos, sentimentos - tudo em ameaça constante que me oprime como o peso das palavras sobre a bolsa de valores. E eu não sei para onde ir, como ir, por quê ir. O que eu sei é que meu tempo é contado, mesquinhamente pingado no meu vaso, com certos toques de abusos e reduções. Como eu, quantos, neste exato momento, estão assim? Eu não sei. Eu não sei de mim.

Entreolhar temporal

Imagem
Foto: CCBS-UFS. Rafael Rodrigo Marajá. Percorri esse caminho quando não entendia nada e só o que tinha era um desnorteamento entre o estômago e novos conceitos.  Encontrei pessoas, nesse mesmo caminho, que agregaram minutos de distração e outras, cheias de falsas esperanças, sentaram comigo para um suco, penosamente pago. Eu fiquei e elas se foram. Não mais as reconheço. E eu mesmo não sou o mesmo. Fiquei ali, no entrocamento entre o passado e o presente, com os bolsos vazios, o pensamento perdido e os olhos fixos nas folhas. Fiquei, entre motivos, porque não havia para onde ir e nem uma marquise para me abrigar do sol, da chuva e do desalento. As estações passaram, as pessoas passaram, o tempo passou, o clima mudou e eu, errante, fiquei. Ainda estou e me encontro a cada quinze dias, olhando para as plantas que crescem, sentindo o cheiro do formol e cheio de desafios a superar para manter o mínimo. Ainda sou o mesmo, sentindo-me encardido, ignorante e perdido.  Eu ...

Dia 03

Estamos vivendo em fatias, esperando. Já esperamos tanto que nem nos lembramos mais o que estávamos esperando. Só continuamos por hábito, triste costume. Agora que passou o Carnaval passamos para o estado de inércia, uma espera que parece que se renova a cada dia. Ali na frente, mais cedo, o homem, bêbado, derrubou a mulher da cadeira propositadamente e começou uma guerra de agressões físicas e desculpas, nem sempre da parte ofendida. Nada novo depois de duas cervejas e um feriadão. Eles, o casal, esperam. Do lado, mais perto, a grávida espera o marido, ouvindo o terço das 18h e, parecendo uma dramaturgia realística inspirada na sétima arte, o marido sempre grita pedindo avisando que chegou e ela joga a chave. Parece uma cena de A Vida é Bela, aquele filme emocionante. Eles, o jovem casal que ainda não foi destruído pela rotina, esperam. Embaixo, os jovens saem em suas descobertas, deixando a solidão de vidas escravizadas pelo comodismo e pela idolatria a homens. Embaixo, eles esperam....

Dia de feira

Imagem
Photo: Alfred Thompson Gobert. Louis-Rémy Robert. The Met.    Eu vi o dia ir esfriando, amenizando o tormento de uma temperatura acoitadeira de pobres diabos que busca o pão de cada dia - nem sempre de forma digna.  Da minha mesa de bar eu vi o casal que envelheceu com  o costume de tomar uma cervejinha depois das compras na feira. Vi os bêbados que se escondem nas sombras sociais, sempre esperando uma fatia de vida não viciada, languidamente jogada por qualquer passante.  Vi velhos conhecidos. Vi o desespero por maiores vendas. Vi mais um dia que se consumia em rostos gastos, em rotinas cansativas. Vi a noite caindo sobre todos - sobre a minha cerveja e o meio jeito inexpressivo de observar. Vi-me em rostos diversos, vestindo roupas desobedientes à moda corrente, falando a outrem sobre preços e leves pornografias. Até que todos começaram a ir embora e o bar ir esvaziando.  Até que tudo mudou, como sempre muda. E a vida, mutante sempre, transformou-me no bo...