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Crônica de uma vida insuficiente XV

Há momentos que nossos algozes conseguem entrar em nossa psique e interferir em nossa autoimagem. E exorcizar os demônios plantados em nosso íntimo é um ato hercúleo que precisa de apoio e muita coragem. Alguns sucumbem e creem-se miseráveis pelo olhar e mal-querer de outrem. Outros até justificam aqueles que lhes chicoteia com pensamentos e palavras. E outros tantos tentam, sob uma saraivada de críticas e xingamentos, libertar-se das amarras. E se o futuro é incerto e surpreendente não temos, então, a necessidade de ficarmos cativos de situações e pessoas cujo único objetivo é a manutenção de um status quo delirante e imaginável. A escravidão já assume ares de tecnologia da informação, prestígio em redes sociais e competições com e por futilidades; e não precisamos alimentá-la com mais facetas, embora existentes e antigas. O preço nunca é baixo quando se paga e luta pela liberdade de ser quem se quer ser. O preço é ainda mais alto quando se percebe, no fim da vida, que toda uma ex...

Crônica de uma vida insuficiente XIV

Um país de vítimas silenciosas. Um país de golpes e golpistas. Para alcançar alguma coisa ensinaram que precisamos golpear para ter sucesso. Golpe no Reino. Golpe no Império. Golpes políticos sucessivos. Golpe na África. Golpe nos negros. Golpe nos índios. Golpe nos trabalhadores. Golpes. Golpes e mais golpes. Terreiros invadidos. Igrejas saqueadas. Devotos abusados. Fome. Peste. Depravação. Ditadura. Recessão. Destruição. No país que sobrevive à base de golpes e castas não é estranho que aqueles que um dia viajaram de avião pela primeira vez não possa, hoje, comer. A comida voltou a ser artigo de luxo. Viver voltou a ser difícil e constrangedor. E as vítimas, preferindo ser opressores, continuam a marcha de golpes do país.

Crônica de uma vida insuficiente XIII

Vivemos em pleno absurdo e não há como se esconder. A política, comprada e vendida a peso de ouro manchado de sangue, fome e pestilência, castiga-nos com nossas próprias escolhas. É, ao mesmo tempo, motivo e consequência. A conduta humana parece nunca ter se degradado tanto. E embora já tenha existido períodos mais sombrios esse é o mais injusticável e o mais indefensável. Parece que esquecemos os motivos da encarnação e os meios necessários para uma evolução útil para esta e as próximas vidas. Jogados à nossa própria mercê, vítimas e vitimadores, somos a destruição que os católicos escreveram e que os protestantes tanto esperaram. 

Crônica de uma vida insuficiente XII

O cheiro da carne crua ainda acalenta o ar quente das pequenas - e nem tanto- cidades nordestinas. Os mercados públicos e os açougues, lugares de morte e dinheiro sanguinolento, fornecem a carne que vai para a mesa do cristão, do protestante e do candomblecista; alimenta o corpo viciado pelo mal travestido de bem e faz sobreviver os pobres, que catam suas vidas em empregos sofríveis e no chão repleto de tudo, menos esperança. Um dia o jeito é virar magarefe e retalhar o que nos empurra para baixo e para o obscurantismo. De resto, entre langanhos e varejeiras, estamos chafurdando na lama de doenças políticas, morais e físicas.

Crônica de uma vida insuficiente XI

Quando passo horas olhando ao redor, geralmente em decorrência da explicável ineficiência do transporte público, percebo facilmente as vidas que escorrem na escravidão de empregos alheios às necessidades mais básicas do ser humano. Vejo homens de olhares cansados que creem ter que vender sua vida por um salário mínimo corroído porque disseram, com o poder da publicidade e propaganda popular, que sem um automóvel eles não seriam ninguém. Vejo mulheres exaustas da vida que lhes entregaram e cujo único proveito é a concessão de respirar e ingerir uma má alimentação pela boa vontade da opinião pública, sempre cruel. Vejo crianças vindo do shopping com caixas de bombons nas mãos, em cujo interior está o que sobra de suas infâncias em constante perdição. O que vejo é óbvio e não fosse a cegueira, prima-irmã da covardia, todos deixariam a futilidade de uma vida escrava do consumo e iria para casa, viver.

Crônica de uma vida insuficiente X

A educação, como Paulo Freire muito bem defendeu, precisa ser transformadora e provocar, no transformado, a ousadia de defender seus princípios, que se desenvolvem ao longo da vida. Essa transformação, concretizada em pequenas ações diárias, aterroriza a Casa Grande por dar à Senzala a voz e a audácia de não ser menos que humano. Em um país em que empregos são armas e grilhões sob o usufruto de medíocres tudo é justificado, banalizado. Trabalho escravo, humilhações, cárceres ilegais, trabalho infantil, assédio - nosso cotidiano é de terror psicológico. Quando a Casa Grande perceber que a Senzala adquire consciência, ainda que demorada, de sua própria força e capacidade já será tarde. Porque esse país é de gente pobre, sofrida, massacrada. Sob a tinta das paredes dos palácios do varejo e da indústria está o sangue do explorado e a vida comprada com o refugo dos senhores feudais modernos. Ainda há pobre humilhando pobre por razões de branqueamento. Ainda há inseguros e opressores em...

Crônica de uma vida insuficiente IX

Hoje os pobres enfurnados na ilusão de riqueza, que se autodenomina classe média, com medo de voltar à classificação de pobre, bate panela contra o governo que até ontem apoiava e seguia tal qual uma religião. O medo de ser pobre, de estar pobre, de cheirar a pobre leva a classe média às raias do ridículo. Os pobres de verdade foram para baixo da linha da pobreza e os que aí estavam foram para a extrema pobreza. Um puxando o outro com o peso da inflação e de um decrescimento a olhos saltados. Não é por Manaus. Se fosse pelo estado nortista ajuda formal teria sido enviada primeiro ao Amapá e depois ao Amazonas. Não é pelas consequências do novo coronavírus e suas mutações. Se fosse não fariam tanta resistência em adotar uma economia solidária e procedimentos mais sanitários para o cotidiano. Não é pelas pessoas. Nunca é. É pelo bolso que agora projetam frases e fotos contra o portador do berrante. O Messias, visto sob a ótica do desleixo para com o povo brasileiro, cumpre suas pr...