Postagens

22:45 - Quase morte*

Imagem
Escultura: Seated Figure. 13th century. MetMuseum A paisagem corria solta janela a fora pintada com um verde forte e umas manchas acinzentadas pela chuva recente mostravam as feridas nos pequenos montes à beira da estrada. E as rodas frearam. O automóvel parou após um longo silvo de pneus e asfalto. A paisagem parou. Eu parei. Parei entre pensamentos opressivos e um ar rarefeito. Parei para ver o ostracismo de uma rotina que estanca apenas com um acidente casual em uma rodovia qualquer e sem sinalização . Parei com seu nome na língua e sua imagem refletida nas retinas em um filme alegre que parece que não ter uma pausa, uma quebra, o fim e o início. Uma tela que armazena minhas cicatrizes como forma de reviver uma felicidade sombria, porque já não existe mais. Os personagens estão sorrindo para uma bobagem banal e um transeunte, no passado filmado. E, no entanto, abandonaram-se como dois desconhecidos, chorando, sofrendo, martirizando-se, banindo-se de uma felicidade contida...

22:31 - Tempo gasto*

Imagem
Fotografia: Campden Hill. London. Bill Brandt. April 1949. O tempo que a pessoas gastam contigo é exatamente a expressão do quanto te valorizam. A chuva cai. A noite cai. As pétalas de uma flor caem. A pele cai sobre outros pedaços de pele. Os olhos deixam cair tudo aquilo que não se pode conter porque é grande demais para ser digerido por uma mente tão cansada e tão resistente às intempéries de uma tempestade nas ilhas de granito de uma costa qualquer. E quando os ventos trazem chuva, dizem que não pode aparecer. Quando o sol está alto e o cheiro de terra se mistura com o de gente, dizem que não pode ir ao passeio. Quando a maré baixa disputa com a alta por uns momentos de alucinações, dizem que não pode estar presente, pois não há cais. E quando estará, presente, mesmo através de feitiçaria? O tempo não perdoa, apesar de seu poderio inabalável. E quando se fala em tempo também se fala em valor, pois o tempo, mais que o metal e a pedra preciosa, quantifica, expressa e d...

22:30 - A pena da realidade *

Imagem
Obra: Love. Adam Fuss. 1992. MetMuseum. Não te darei joias, nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas. Não te darei casas, praieiras ou campesinas. Não te darei automóveis, antigos ou ultramodernos. Não te darei um buquê de flores no inverno, nem uma rosa na primavera. Não te darei sorrisos largos quando eu estiver triste, nem contarei piadas para disfarçar-me. Não serei lindo como modelos, nem terei o maxilar quadrado – mesmo com cirurgia plástica. Não farei loucuras para te dizer aquilo que é inexpressivo. Não serei tua alegria todos os dias. Não serei tua tristeza sempre. Não serei tua razão de viver. Não serei tua angústia. Não serei tua palavra mais doce. Não tocarei violão à beira mar. Não vestirei calças quando houver um féretro. Nem serei hipócrita ao sorrir para uns tantos conhecidos. Não gostarei de todos os que chegarem perto de ti. Não chegarei na hora certa sempre. E, com um pouco de boa vontade, verás que não sou perfeito. Também não sou tão defeituoso. E verás q...

"Algo se quebrou"

Imagem
Quadro: The Fortune-Teller. Georges de La Tour. 1630 (data provável). “Algo se quebrou” é uma expressão muito usada e que traduz a fraqueza de caráter do usuário. Empregada frequentemente quando o comodismo e as ações reprováveis são ameaçados com a luz da verdade e da ética, “algo se quebrou” é praticamente um hino da desordem moral, ética e de caráter que uma pessoa sofre. Marca um estado doentio em que a permissividade domina os vários aspectos da vida pessoa e pública. Já ouvi essa expressão quando tentaram esconder as fraudes cometidas no serviço publico; quando a fofoca tornou-se o pilar do cotidiano; quando outras pessoas não aceitaram ser subjugadas pela miserabilidade moral de pessoas e instituições; quando serviçais denunciaram mal feitos dos patrões. Por trás dessas e de tantas outras situações os usuários de “algo se quebrou” esconderam-se do dever de buscar o correto e repudiar o erro, vitimando agressores e demonizando as vítimas. Para essas pessoas, por exemp...

22:22 - Espera*

Imagem
Quadro: At the Lapin Agile. Pablo Picasso. 1905. MetMuseum. Abrir a porta é um gesto mecânico, involuntário. E quando o denso material abre trazendo a luz de fora, que inunda recantos e paredes, a alegria de uma visita me enche de alegria e de uma satisfação incomensurável, distinta, linda. Alegria transpira pela minha pele e chega em um sorriso escancarado para alguém que não veio e que parece não vir. A porta abriu-se para uma esperança. A luz entrou sem licença e trouxe consigo só mais um estado de espera cuja alegria desvaneceu-se nos tantos momentos de expectativa. Mas você não veio, nem mandou avisos de impedimentos. Por que você faz isso? Quando a noite vai chegando e o ocaso aparece para trazer o descanso de um dia intenso, ou preguiçoso, espero para contar-lhe todas as minúcias que ocorreram no trabalho, ou nos sonhos. Faço café para uma boa conversa. Compro o pão quente na padaria lotada antes de chegar e peço para que nada aconteça nos minutos do fim de tarde, par...

22:17 - O Sol que espera a noite*

Imagem
Quadro: Woman with a Parrot. Gustave Coubert. MetMuseum. O sol ainda estava longe e os primeiros raios da manhã já faziam suas saudações às aves próximas quando eu ainda estava acordado, olhando para os vidros embaçados da janela e as cores confusas da aurora. Meus olhos não cansavam de olhar para o nada, cujo plano de fundo era uma mistura de cores, visões e pensamentos, próximos e cortantes. Andei descalço na rua quando a chuva caiu e saltei sobre os montes quando apenas uma leve garoa ameaçava aprofundar ainda mais os poços de lama que há nas margens de uns caminhos tortuosos. Não vi flores sobre os parapeitos. Não vi o sorriso no vidro do carro. Não vi você pertinho, segurando a minha mão, dizendo que daqui a pouco estaríamos molhados e sujos por andar tanto e sem rumo. Caído sobre os braços, em pernas preguiçosas, a cabeça voou, sobrevoou as cidades, atravessou o tempo e destruiu as barreiras, do som e do impossível. E planou sobre todos os lugares e sobre lugar nenhum,...

22:05 - deus*

Imagem
Arte: Statuette of Isis and Horus. 332-30 B.C. MetMuseum.  Não se escreve aquilo que se aconselha. Nem se aconselha aquilo que não viveu. A vida deveria dar-me o mundo e suas riquezas. O universo deveria matar-me e fazer-me renascer em todos os milhares de anos. A Igreja deveria tornar minhas falas preces aos injustos sonhadores. E ninguém deveria dar-me tudo, no mesmo espaço de tempo em que o tudo é-me oferecido no silêncio do meu abrigo. Minha atenção é a tensão entre o fazer de tudo e o não fazer nada. Já não quero impressionar a ninguém, nem a mim. Minha paixão tem nome, mas o corpo recusa-se a aceitar que o impossível tornou-se possível no mundo terreno. Minha alma foi ao inferno buscar chocolate quente, de puro cacau, enquanto meu corpo ficou no céu, paquerando as ninfas. Minha casa é um bordel durante as noites e um mosteiro durante o dia. Minhas roupas se transformaram em retratos de luxo e minha pele reveste apenas um veículo. No ser arte de um Ser, acabei sen...