22:05 - deus*
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Arte: Statuette of Isis and Horus. 332-30 B.C. MetMuseum. |
Não se escreve aquilo que se aconselha. Nem se aconselha aquilo que não viveu.
A vida deveria dar-me o mundo e suas
riquezas. O universo deveria matar-me e fazer-me renascer em todos os milhares
de anos. A Igreja deveria tornar minhas falas preces aos injustos sonhadores. E
ninguém deveria dar-me tudo, no mesmo espaço de tempo em que o tudo é-me
oferecido no silêncio do meu abrigo.
Minha atenção é a tensão entre o fazer
de tudo e o não fazer nada. Já não quero impressionar a ninguém, nem a mim.
Minha paixão tem nome, mas o corpo recusa-se a aceitar que o impossível
tornou-se possível no mundo terreno. Minha alma foi ao inferno buscar chocolate
quente, de puro cacau, enquanto meu corpo ficou no céu, paquerando as ninfas.
Minha casa é um bordel durante as noites e um mosteiro durante o dia. Minhas
roupas se transformaram em retratos de luxo e minha pele reveste apenas um
veículo.
No ser arte de um Ser, acabei sendo
rascunho de uma nova raça cuja consciência é a loucura do povo atual e de nada
adiantaria provar que amo, se é ao ódio e à mentira que dedicam o altar. E nem
acredito no amor que dizes ter tido, nem no amor que dizes ter. Nem em nada,
pois para cada fato que dizes sempre existem duas versões: a tua e a do mundo.
Não me peçam para pedir perdão por ser
sincero. E não é a sinceridade o que buscam? Tampouco peçam para esquecer
aquilo o que se perdoa, mas que é inesquecível. Não me peçam para deixar de me
entranhar no corpo, na roupa, na vida, no cheiro, daquele ser a quem escolhi
para enlouquecer. Não me peçam para aceitar seus presentes mundanos,
hipócritas.
Em posse do conhecimento, desconheço
suas formas mentirosas de cair no abismo da infelicidade. Por que uma pessoa,
podendo ser feliz, escolhe ser infeliz?
Gostaria que soubesse que a mulher que
amei um dia será sempre amada e que meus inimigos serão sempre meus inimigos,
não importa quantos natais precisem ser quebrados.
Sou aquele a quem se deve a vida ao
pedir um favor banal. Mas também sou aquele a quem não precisa falar, nem
explicar porque são desnecessárias desculpas. Aquele que mede o valor das
pessoas, sentimentos e fatos com o peso de metais baratos, dando-lhes valores
baratos.
E entre o que deveria ser-me dado e o
que deveria estar comigo, nada resta. E tudo tem um novo valor, barato,
simplório.
Sou o conselho de quem tem boca e
ouvidos tampados pelo silêncio de uma vida grande demais para caber em uma
caixa de fósforos.
*Do livro Pavilhão do Vizir,
Rafael Rodrigo Marajá
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