22:17 - O Sol que espera a noite*
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Quadro: Woman with a Parrot. Gustave Coubert. MetMuseum. |
O sol ainda estava longe e os primeiros raios da manhã já faziam suas saudações às aves próximas quando eu ainda estava acordado, olhando para os vidros embaçados da janela e as cores confusas da aurora. Meus olhos não cansavam de olhar para o nada, cujo plano de fundo era uma mistura de cores, visões e pensamentos, próximos e cortantes.
Andei descalço na rua quando a chuva
caiu e saltei sobre os montes quando apenas uma leve garoa ameaçava aprofundar
ainda mais os poços de lama que há nas margens de uns caminhos tortuosos. Não
vi flores sobre os parapeitos. Não vi o sorriso no vidro do carro. Não vi você
pertinho, segurando a minha mão, dizendo que daqui a pouco estaríamos molhados
e sujos por andar tanto e sem rumo.
Caído sobre os braços, em pernas
preguiçosas, a cabeça voou, sobrevoou as cidades, atravessou o tempo e destruiu
as barreiras, do som e do impossível. E planou sobre todos os lugares e sobre
lugar nenhum, só para ver você, de longe, e sentir, através do vento, seu
cheiro.
Mas o devaneio acabou quando os raios
solares adentraram o recinto, obrigando-me a ser apenas um número de oito
dígitos, um ícone, um estorvo. E a beleza da indecisão noite-dia acaba. A nudez
dos fatos traz de volta o achismo e faz uma dança animada sobre feridas nunca
cicatrizadas e sempre doídas. Aliás, feridas cujos sintomas e profilaxia não se
limitam a apenas um método, mas a um conjunto inesgotável de procedimentos
simplórios, que se tornaram impossíveis. Impossíveis?
Implacável, o rosto refletido no espelho
mostra-me o quão estranho é uma realidade, sólida, frágil, infame, que me
submete a um viver sem gosto, capaz apenas de fazer desesperar a mais branda
criatura. As luzes naturais que atravessaram a imensidão do universo refletem
aquilo que mais queria e, por isso, mais sofre e sorri. Queria apenas voltar
para aqueles braços, abraços sempre tão calorosos e cuidadores. Queria voltar
para sua proteção singular. Queria voltar para sua cabeça e caminhar entre seus
segredos. Queria navegar em seu coração e deixar-me à deriva de seus humores.
Queria que você me acorrentasse em seus domínios, que me maltratasse com duras
penas. Queria que você me jogasse dentro do liquidificador e me misturasse com
sua comida, quando o tédio a assaltasse (prometo não ser venenoso). Queria que
me deixasse na estante, olhando para tudo, vigiando cada lugarzinho seguro e
inseguro, enquanto você trabalhasse. Queria que me colocasse nas malas e me
levasse para longe, sempre que o serviço chamá-la. Queria que me deixasse
abraçá-la sem motivos. Queria que me deixasse brincar com coisas simples e ser
criança a maior parte do tempo, só para que você brigasse comigo e eu, com cara
de criança inocente, ficasse emburrado por causa da bronca. Queria que você me
deixasse fazer uma surpresa sempre que o meu relógio interno enlouquecesse, só
para ver sua reação. Queria que você me deixasse cuidar de você, sem motivo
aparente. Queria que me deixasse vê-la dormir. Queria que me visse sempre que
não estivesse por perto. Queria ser a razão da sua raiva, mas também o motivo
que a faria gargalhar sempre que a raiva passasse. Queria que me guardasse
dentro de invólucros secretos, mas que me usasse até a exaustão.
E, talvez, o verbo seja colocado errado,
até mesmo para o eu que se olha no espelho em uma manhã malnascida. O verbo
deve estar sempre no presente, ainda que isso signifique ilusão. O verbo é quero.
A barba ainda cresce tímida, entre a
correria das horas e nenhuma função exerce sobre o grande plano dos deuses. Que
deuses? Rezaria para os gregos, se eles ouvissem; rezaria para os africanos, se
eles quisessem; rezaria para o hebraico, se ele me desse; rezaria para os
inventados, se a imaginação suportasse algo mais além das fantasias que povoam
as cidadelas e os tempos. Não rezo. E não peço. Pediria se adiantasse, mas tudo
o que conseguiria seria estar parado, enquanto tudo continuaria a mesma coisa,
no mesmo ritmo.
Nos olhos, a sombra da noite ainda
vagueia. E continuará vagando enquanto sobrar dias e noites em que a sonolência
é um mero animal domado, sem perigo a oferecer. Olhos vazios cuja negritude
invade a luz e torna tudo mais denso, mais negro, mais sem vida. Olhos que não
querem sair da escuridão, pois tudo o que veem é um mero amontoado de bilhetes
para uma entrada na vida exaustiva e sem graça, onde protagonizam personagem de
tramas reais: vizinhos, amigos, conhecidos, amor a si. E para que estar em um
espetáculo onde a ironia nem consegue ter acento cativo, onde o amor é
desprezado, onde o importante foi deixado na bilheteria, barrado por não ser
tão importante; onde qualquer efemeridade é superior a qualquer lembrança boa?
Não, esses olhos veem tudo e repugna-se ao ter que se lavarem e fingirem uma
cena a mais no teatro dos hipócritas.
Um rosto que pena uma dor em fogo brando
e que não pode partilhá-la em mil pedaços, porque é de pedaços que aquela é
feita. Uma fisionomia que denuncia o interior para outro ser, apenas. E ali,
próximo ao pescoço, a frieza de uma lâmina estremece o medo e clama por uma
coragem sempre viva e pronta para livrar de mais um. Afinal, o que é mais um?
Um que sorri quando é necessário. Um que
anda só para não perder o tempo já gasto. Um que percorre o trajeto de palavras
escrotas inúmeras vezes só para não ter que cair no ostracismo dos dias. Um que
ama, que tanta cuidar, que sorri com um gesto. Um que pede só um carinho sem
obrigações. Um que não está se importando com nada além de querer e um
gostar-mais-gostar-calado. Um que erra; que pisa em falso em terreno sólido. Um
que nada significa para a imensidão dos olhares e dos beijos.
A lâmina, barata, de procedência
duvidosa, arranha a pele de cor indefinida, avermelha os olhos em meio à
escuridão das retinas, afaga os pedaços e estilhaça-se ante a dura armadura que
reveste, invisível, a carne de mais-um. O sangue escorre em fina linha do
pescoço, banhando o peito e a roupa. A manhã ainda nasce com vivacidade para
todos aqueles Robôs que trabalham e comem sem se importarem com o que é
realmente essencial.
Será que será mais um ciclo de horas nas
quais vou esperar que você ligue e faça feliz uma tormenta que é sua? Será que
não se importa com o sorriso forçado que dou para as câmeras e para as lâminas
de facas que perscruto no caminho até o abatedouro de vida?
O sol já saiu e a rotina chama qualquer
inerte para qualquer trabalho burocrático. O sol chama-me a esperar pela noite.
*Do livro Pavilhão do Vizir,
Rafael Rodrigo Marajá
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