O deus particular
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Pintura: Kathy with a Yellow Dress. Henri Matisse, 1951 |
O amor é egoísta. É intrínseco a quem o sente. É fabuloso. É mentiroso e magnânimo em suas manifestações. Dizem que precisamos do outro para amar - e isso é, por si só, uma mentira. No fundo, e de forma inadmissível, necessitamos apenas da representação física do outro. Precisamos apenas de um rosto que traduza o sentimento e de um corpo que ocupe um espaço, em algum lugar.
Todo o resto é bônus ou ônus.
Quando se ama alguém todos os erros são perdoáveis, todas as faltas são justificáveis e todas as expressões humanamente possíveis são tratadas como pequenos incômodos de nosso deus particular. Porque quando se ama alguém este se torna apenas e tão-somente um deus particular capaz de mover as ilhas do pacífico, eliminar as doenças e sofrimentos do (seu) mundo e realizar milagres.
Para esse deus chora-se, contra ele ira-se, a favor dele tornamo-nos Tersito. Em seu altar deixa-se a alma, as roupas do próprio corpo, o corpo, lágrimas, risos e flores. Em sua homenagem o adorador torna-se apenas mortal.
É um deus que se acaba, cuja idade é tão efêmera quanto o éter, e que, talvez por isso, seja tão ousadamente desesperado. Alguém pode ter, e tem, nomes diversos, cores de olhos, cabelos e pele dos mais variados e tem a mutação inconstante do capricho. O que o alguém de cada um tem de igual a todos os outros é a divindade implícita outorgado pelo amor.
E ao mesmo tempo que é um deus é também um adorador.
Então diz-se que amar é quase divino. Ledo engano. Amar é meramente humano. Se amar fosse divino, como o pintam, não mataríamos por amor, não destruiríamos o amor sempre e quando não corresponde aos nossos desejos mais íntimos. O amor é essa exteriorização do silêncio da madrugada que cala as hipocrisias diárias e que quando deixa de ser vestido por alguém, por um rosto, deixa também de ser amor, de ser a si.
O que é certo, quem sabe refutável, é que amando-se primeiro cria-se um deus primário que, ao menor deslize do outro, o deus particular criado pelo amor, torna-se possível matá-lo e não apenas destituir-lhe a divindade.
O amor não é cego - é só um poder que ilude o outro por só olhar exclusivamente para sua fonte criadora.
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