Pelas folhas de vidro




Note in Pink and Brown
Quadro: Note in Pink and  Brown. James McNeill Whistler. 1880.

O vizinho do outro, que aparentemente beija rapazes, não quis fazer uma de suas periódicas festinhas. O do andar de baixo não quis ter mais uma sessão de sexo selvagem, como no meio da semana e as fofoqueiras habituais do salão de beleza já foram. O apartamento de frente não está com a TV de 105'' ligada nos programas chatos da Record ou do SBT. As luzes de um novo dia já já começaram a rasgar o dia. Um dia novo com hábitos antigos.
O Tédio, senhor de muitas horas, está na sala assistindo ao Corujão, com aquela expressão aborrecida no rosto. Ao seu lado o Ócio cansou de papo furado e deseja pôr-se em movimento. Mas como? Não acha saída. 
Olhando-os assim, de frente, sem pretensões, é fácil entender as razões dos homicidas; o sentimentalismo dos velhos; o desespero dos jovens; a vontade de morrer dos vivos e as saudades de quem não possui mais poder para realizar pequenas proezas do dia a dia.
Enquanto olho pelas folhas de vidro da janela é fácil perceber quão desesperados estão esses que dormem no calor de seus cubículos - que, vulgarmente e de forma iludida, chamam de casa. Tédio diz que em meia centena dessas janelas o sexo não existe há muito tempo e no restante ele tornou-se mera obrigação. Ócio não se conforma com as obrigações dessas pessoas. E somente em um ponto eles concordam: os infelizes são felizes por não precisarem refletir sobre si.
Os primeiros raios de sol despontam por entre nuvens e carros solitários deslizam na avenida. É hora de eu sair da janela, desligar a TV e levar o Tédio e o Ócio para a cama, quem sabe eles queiram ler um pouco ou pensar na miséria que reina na vida. 
É hora de olhar para os homicidas que sobreviveram mais uma noite, para as velhas que já se levantam para uma boa dose de maquiagem, para os trabalhadores que já pensam em gastar o décimo terceiro em panetones baratos, luzes e presentes medíocres. Todos sobreviveram para mais um dia.

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