A Antares de Alagoas

Foto: Cemitério Santo Amaro. 

O Dia de Finados é engraçado no sentido mais mórbido da palavra. Não é estranho que seja dedicado aos mortos, agora habitantes ou do céu ou do inferno - para aqueles cujas religiões aceitam essas definições-, mas pela vontade superficial de parte dos viventes de mostrar o quanto sofrem pela perda. E vamos aceitar a realidade crua de que nem todos os que morreram deixaram saudades e boas lembranças da mesma forma que nem todos os vivos são capazes de expressar seu amor e gratidão aos finados.
Se por acaso você subir a ladeira da rua Pedro Soares da Mota, que insistentemente tentam mudar a cada ciclo de quatro anos, vai se deparar com dois cemitérios - e não somente dois portões- apesar de os muros definirem apenas a separação das covas com as casas vizinhas e nenhuma distinção entre o São Gonçalo e o Santo Amaro. Essa falta de divisão deve ter irritado bastante aos poderosos de outrora que certamente desejaram que seus familiares não se misturassem com a ralé que os elegiam e sustentavam com compras nas lojas locais. 
(Toda cidade pequena e média tem os cemitérios dos ricos e poderosos e dos pobres. Veja em Estância-SE onde há dois cemitérios, um de frente para o outro. O vermelho pertence aos pobres. O azul, aos ricos. Ou assim era antes da moda de cemitérios serem chamados de parques e custarem muito caro).
Hoje, os dois, que se transformaram em apenas um, pertencem aos pobres e aos muquiranas que não querem pagar por um pedaço do paraíso, fora dos limites da cidade e muito bem cuidado, com grama verde mesmo no verão implacável das Alagoas. Minha avó materna está sepultada no São Gonçalo e a cada blasfêmia ou sacrilégio que digo ou cometo ela nem pode se revirar no túmulo porque túmulo não há mais e os ossos já escorreram, nas chuvas de janeiro e do inverno, pelos buracos escoadouros que dá para a rua de lado (calçada há anos na documentação da Secretaria de Infraestrutura e que, na prática, continua no barro, vermelho igual ao dos cemitérios). 
E não estranhe!
Não apenas os restos mortais da minha avó foram para a boca de algum cachorro qualquer (ou lata de lixo) ou estão perdidos no solo como adubo - milhares de restos mortais estão na mesma situação e sempre que é preciso cavar uma nova cova em um lugar onde, aparentemente, ninguém foi sepultado uma nova ossada surge das profundezas da terra. É cômico e desrespeitoso ao mesmo tempo. 
São cemitérios sem administração, como são parte das escolas, das obras públicas e dos museus. E como parte da tradição da cidade, ninguém se importa.
Hoje várias pessoas vão se espremer entre covas rasas, onde a maioria foi erigida sobre a terra, sem corpo nenhum por baixo (porque ninguém sabe onde foram parar os restos mortais e porque é preciso de um lugar para acender uma vela e deixar umas flores), entre túmulos de tijolo e cimento, lendo datas apagadas e nomes escritos de forma errada para relembrar os mortos ou fingir que é um devoto cristão que merece um lugar no céu, quando a hora fatal chegar.
Na porta de cada campo santo estarão vendedores de flores, gritando o dia todo e em um estresse infernal ao lidar com os pechincheiros. Dentro, o calor exagerado da primavera misturado ao cheiro da parafina queimada e do calor provocados pelas velas tornam qualquer oração inviável e o mais terrível são as discussões, dentro e fora do campo santo e em casa, quando os familiares, vindos da capital alagoana, descobrirem que não sabem onde fica a sepultura. A perda de sepultura é outro mistério inexplicável de Palmeira dos Índios.
Não acredito muito em velas acesas sob um sol de 30ºC nem de flores murchando na poeira (quando não são furtadas). A comoção histérica do dia de finados poderia muito bem ser substituída pela lembranças de bons momentos que teve com os finados, sem precisar da peregrinação de 02 de novembro.
Quem realmente importou não morre quando o corpo é comido pelas larvas embaixo da terra (sim, a realidade cruel é essa), nem precisa de velas e flores. Lembrar e relembrar é a melhor oração que se pode fazer. 
E se por acaso subir a ladeira e vir o comércio de flores e vela e não puder sentar no barzinho em frente ao campo santo para uma cerveja gelada e lembrar o quanto Palmeira dos Índios lembra o romance de Érico Veríssimo, Incidente em Antares, passe direto, dobre na próxima esquerda, desça pela Salú Branco vá com Deus.


Cemitérios de Palmeira dos Índios - AL.



Clique aqui e leia Um quarto no escuro.
Clique aqui e leia Áspide.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reunião de faces

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

Nada além do que virá