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Quando fui à padaria

Fui à padaria da outra rua, quase no mesmo velho horário. Vi as mesmas pessoas que sequer imaginam as reviravoltas da minha vida. Vi as ruas ainda sendo calçadas e os mesmos desocupados na esquina.  Eu fui à padaria sozinho, nesse novo recomeço, nessa nova realidade. Vi, expostos na vitrine, a torta que eu sempre como, pastéis e coxinhas. Ah, coxinhas!  Ela amava aquelas coxinhas! Sua paixão por elas beirava a indecência e era divertido de se ver. Sua vontade e sua voracidade não tinha limites. Não tinha como não lembrar. Dessa vez, como será daqui para frente, eu deixei a coxinha lá, à espera de outra amante loucamente apaixonada. Levei minha torta e minha coca-cola.  Eu fui sozinho e lembrei memórias de um passado que ainda não se definiu bem. Fui por sua obra. Por sua obra... Agora estou sentado à porta, ensimesmado e indagando-me: será que as pragas do sangue finalmente me alcançaram?

Preços, vizinhos e pandemia

Sexta-feira.  Dia de Oxalá. E mais uma semana que vai terminando. A pandemia segue seu ritmo darwiniano. E eu sigo meu ritmo, seja lá qual for. Meus vizinhos deram uma parada nas comemorações rotineiras, em que nada em específico se comemora. Eu vi, sem querer, nos abusos de propagandas das redes sociais, o preço da cerveja. Meu Deus, onde vamos parar com esses preços?  E, justamente por tão salgados preços, é que não entendo como tantas pessoas, como meus vizinhos, bebem tanto e quase todo dia. Entre bebidas e sabonetes caros e de marcas não goumertizadas, eu sigo, não sei para onde. O que sei é que hoje é sexta-feira. Dia de abraçar e agradecer, como bem interpreta Maria Bethânia naquele show belíssimo .

Máscaras apavoradas

Minhas únicas duas máscaras, que são descartáveis, estão penduradas em um prego na parede como se fossem troféus de uma macabra competição. Sem poder sair e sem dinheiro para ter que sair, os dias vão passando rápido, como se estivessem com pressa. Não sei qual o destino, mas que quando vejo já é noite e o sono bate à porta da minha mente. Lá fora parece que o mundo continua muito igual ao que era antes, acrescido apenas da sutil diferença de máscaras em rostos apavorados pelo inimigo - invisível a olho nu. Aqui dentro há tentativas de sobrevivência. E só.  Até quando? Creio que nem Deus sabe.

O milagre sou eu

Não há milagres a procurar. Não há nada a procurar porque o que temos é suficiente para muita preocupação e muito abuso.  Falam sobre fenômenos celestes e declarações de ilustres figuras que em absolutamente nada pode mudar minha vida e dão a fatos e desacertos supérfluos a competência de ditar o meu amanhã. O meu amanhã! Amanhã eu não sei se estarei vivo, se a comida chegará à minha bancada americana ou se o banco, finalmente , liberará meu dinheiro. Amanhã nem a Deus pertence, quanto mais a mim. Eu sei do hoje, que já passou, e do agora. E nem é muita coisa isso o que eu sei.  O milagre sou eu - que vou seguindo nessas tortuosidades da vida. E esse milagre, eu, estou achado. O que eu quero agora é me desachar.

Eu

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Foto: Rosto atribuído a Ptolomeu II Filadelfo ou um contemporâneo. The Met.  Eu tenho em mim o fim e o começo Sou o sábado de Aleluia e a terça de Carnaval Eu sou o amor que não se diz E o ódio do amor ferido Eu sou a canção que nunca escrevi E as palavras que os outros disseram Eu sou o tédio de um domingo E o motivo do contentamento  Eu sou o brilho no olhar E o ronronado do felino  Eu sou o filme que ainda não estreou E os aplausos que nunca cessam Eu sou o início  E brisas leves dançam ao nosso redor Eu sou o fim E as lágrimas que salteiam Eu sou o meio Que nunca acaba.

Lodaçal da madrugada

A madrugada começou e o meu banheiro ainda fede. Bactérias se amontoam e criam cores por todos os lados. O mofo cresce sem controle e minha única opção é fechar a porta. Da rua vem um som repetitivo, triste por letras e silêncios. E, se a cultura popular estiver certa, alguém fala de mim e não é coisa boa. Minha orelha esquerda lateja e esquenta. Começou repentinamente. Perguntas sem respostas. Perguntas retóricas. Perguntas incômodas. E eu sei das respostas e não suporto nenhuma delas. Não suporto o tempo. E tolero-me. A madrugada vai seguindo, entre chuvas e mosquitos, entre cervejas e barrigas que roncam. Só eu que pareço não conseguir sair do lodaçal.

Carta a um Ausente III

Oi,  acho que você nem anda lendo as massivas que envio. E espero que esteja bem de verdade e  não apenas usando expressões banais para esconder a realidade. Viva sei que está, amém. Do lado de cá as notícias são tristes e vergonhosas. Você não acreditaria a que níveis permiti que me rebaixassem. Estou tentando me reerguer. Estou tentando confiar em que tanto me fez mal, hediondamente, e sempre concluo que é quase impossível - sempre descubro novos conluios e isso é muito triste, por muitas razões. Não sei como anda essa sua adotada terra. Parece que ela engoliu você e aos seus e se recusa a regurgitá-los. Eu, por outro lado, ando sobre várias terras e em nenhuma encontro morada, um lugar de paz. Quem sabe a Covid-19, um dia, traga toda a paz que  eu mereço. Acabei de limpar a casa e uma preguiça me bateu. Aqui não é lugar para você, sempre achei que certos lugares, dadas condições, não devem ser vistas por você. Por isso mesmo não a convido.  Quem sabe eu visite voc...