Postagens

Fome*

Rói dentro do mundo O queimor do sem nem o quê Rói o ácido espalhado No mundo interno Do corpo extenso Rói o rueiro Sem medo Corrói a fome. *Poema do livro   Anjo da Guarda , de Rafael Rodrigo Marajá.

Fantasiando estupidez

Imagem
Obra: Garden at Saint-Adresse. Claude Monet. 1867. “Estupidez fantasiar dificuldades.” Insônia, Graciliano Ramos. As dificuldades sempre irão existir. A natureza dual do ser humano, refletida em suas obras artísticas, nas megaconstruções, nos devaneios de amor e glória, exige, por si só, o elemento dificultoso para que a recompensa seja doce e todas as atrocidades realizadas com o propósito final para obtê-la sejam justificadas. Há dificuldade na escola, nos relacionamentos, no corporativismo dos empreendimentos e no simples ato de levantar da cama. Agora imagine que se além das resistências e dificuldades naturais da existência humana passarmos a imaginar e criar tantas outras? Não teríamos mais o que fazer e tampouco viveríamos, pois as dificuldades, reais e imaginárias, pôr-nos-iam rédeas e nos prostraria para a morte em vida, que já arrebata milhões de pobres – materiais e espirituais. E se chamam de otimistas ou sonhadores aqueles que não imaginam fantasias e ten...

Morte Solitária*

Acenda o cigarro E queime o pulmão A alma e a casa Destrua o fígado Com  garrafa aberta De cachaça ou uísque Arrase o olho com o pino Do álcool inconsumido Mate-se sem levar consigo Nada de dentro ou de fora. *Poema do livro   Anjo da Guarda , de Rafael Rodrigo Marajá.

A canção mais linda

Imagem
Uma das canções mais lindas que já ouvi é surpreendentemente atemporal. Do repertório do cantor e compositor Oswaldo Montenegro, A vida quis assim é simplesmente bela, emocionante e rica – um exemplo da beleza da poesia brasileira e da sonoridade das palavras. Com um arranjo à altura da poesia, através da voz ímpar de Montenegro, essa canção é capaz de arrebatar qualquer um que esteja sensível ao belo e ao sublime. A primeira vez que a ouvi foi por obra do acaso quando elaborava uma apresentação para uma aula na pós-graduação. Em meio aos princípios pedagógicos que seriam ensinados, e pensando seriamente sobre eles e sua aplicabilidade em sala de aula, acabei esbarrando em A vida quis assim no youtube e foi encanto à primeira vista. Já a reproduzi dezenas de vezes e continuo ouvindo sem cansaço porque ela é simplesmente inspiradora. Há quem não goste de alguns ramos da Música Popular Brasileira – e prefira exclusivamente, quase sempre, o funk (que eu também gosto) ou alguns hits d...

Olhar de Jeca

Imagem
Fonte: MetMuseum. Asher Brown Durand. No céu, em veludo negro, a lua reflete sua luz em uma terra ainda quente. No quintal, em meio ao lixo de dias e dias acumulados, com uma galinha que não voa de um lado, um jeca fala à lua seus desânimos. E chora. Chora baixinho, quase fazendo uma prece ao Deus que habita no Alto e dentro de si. Chorando, com amargura de uma vida que não sai do ato simplório de plantar e colher – trevas, tormentas, furacões e tempestades – o jeca deixa de lado os agradecimentos e lembra das agruras. Em meio às cascas de coco, restos de comida, latas amassadas, pedaços de pau, bosta de galinhas, com gabirus andando ao longe e aves de rapina sobrevoando o céu claro, Jeca tenta, e não consegue, lembrar quando deu a si o luxo de pensar na vida, de onde veio e para onde vai. E não lembra. Não consegue dizer se vai para algum lugar depois que o corpo engelhado pelo sol e enrugado pelas preocupações mesquinhas cair jazido na mesma terra que não rende o pão no f...

Vida e morte

Imagem
Obra: Dune Landscape with Oak Tree. Jacob van Ruisdael. 1650-1655. Tem gente que morre aos poucos, em doses homeopáticas. Uns sentam toda tarde, com u cigarro entre os dedos da mão direita e um copo de café na esquerda enquanto o tempo passa lento, trazendo as sombras da noite. Outros, com menos coragem, jogam-se de pontes e viadutos, sem aviso e sem lamúrias. E aqueles que vivem a rotina, acordando todas as manhãs para fazer a vontade alheia, para beijar a mão dos seus amos, morrem rápido, mas não sem dor. Tem gente que escolhe morrer quando pode viver. Morrer é fácil. Engole-se comprimidos; respira-se gás venenoso; atira-se fogo; obedece-se cegamente a qualquer um; recusa-se a comer; corta-se os pulsos; joga-se na frente de um caminhão... Viver é difícil porque exige coragem e muita força de vontade. Para viver é preciso dizer não aos outros com muita frequência e estraçalhar, sem piedade, a vaidade daqueles que tentam escravizar-nos. Viver exige a solidão de estar no cami...

Pelo telefone

Imagem
Obra: Fragment of a Queen's Face - reign of Akhenaten. Dinasty 18. 1353-1336 B.C. Seminua, olhando o teto, falava ao telefone. A língua tocava nos dentes brancos sibilando uma voz macia, suave, sussurrada. Excitava-o com frases incendiárias faladas baixinho, em um sussurro provocante. Sua mão subia por suas coxas, apertando-se, quente, voluptuosa, enquanto palavras pulsantes atravessavam o espaço em micro-ondas até outro ouvido. Queimando, salivando, suas mãos apertavam os seios, excitava-se em mãos imaginárias que das dela fazia de instrumento – e percorria sua barriga, sua boca, seus olhos, suas coxas, sua pulsação escaldante e vermelha. Nua, arquejando, desdobrando-se em partes desiguais, molhando a si e a cama, ela miava, grunhia, contorcia-se segurando em uma das mãos um telefone enquanto a outra, voraz, invadia-lhe a umidade prazerosa dos grandes lábios – indo sempre mais fundo, mais ardente. Súbito, o miado cessa, as coxas caem inertes e os olhos abrem-se preguiçosam...