Pobretano I

Ilustração de Gabriela Santos.


Muita gente vive entre vielas e favelas. Uns olhando de suas Torres de Marfim, outros entre esgotos a céu aberto, mosquitos, fedores e pestilências diversas. Em comum ambos têm a incapacidade de ver a realidade como ela é, no nível exato de degradação e injustiça.
À parte toda a política e mazelas sociais e econômicas do miserável, tem-se a peculiar situação em que da lama, literalmente, sai o estado da arte de se viver e, vez por outra, a comédia faz-se presente.
Ontem mesmo limpei a casa e joguei, em duas grandes sacolas de lixo, materiais inorgânicos e que para mim não havia serventia. Como todo pobre, deixei para colocar o lixo na calçada à noite uma vez que sem orgânicos os gatos, cães e cavalos não iriam espalhar, como sempre, todo o conteúdo rua à fora. De repente, enquanto eu vagueava pela Internet ouvindo o Biquíni Cavadão, ouvi vozes, risos e gritos de crianças muito próximo. Saí à porta e me deparo com parte do meu lixo jogado na calçada, um menino vestindo uma das sacolas de lixo como se fosse uma camisa e outro exclamando a plenos pulmões que o lixo estava "bonzinho", "novinho".
Sim, o lixo de um é a alegria do outro e na onda da sustentabilidade chega a ser o ganha-pão de muitos que fazem a hercúlea tarefa de reciclar o que nós insistimos em sequer separar antes da coleta. Mas nesse caso as crianças pobres nunca pareceram tão periféricas e residentes de país em desenvolvimento como na situação inacreditável descrita.
No mundo do pobre brinquedos quebrados, colchões velhos e fedorentos descartados, móveis inservíveis e tudo o mais que pode ser deixado à porta acaba servindo para alguma coisa, uma brincadeira qualquer, um risco emergente.
O pobre ainda não tem o direito de viver e no dia que tiver eu me questiono se certos hábitos se perderão em lixo pós-consumo.

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