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Carta a um ausente XIX

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Arte: Portia, Sir John Everett Millais. Met.   Agora você não acredita, mas me parece que os seus esforços são insuficientes para ser o que pensou há alguns anos. É bem verdade que seu caminho acaba em mim quando se trata de pedir caminhos viáveis. E só.  Um dia, talvez quando estiver olhando o mar verde dessa cidade inquieta e malcheirosa, caia-lhe o pensamento na calçada e perceba que, até agora, muito pouca coisa tem importância e que, aquela você de outrora chora ainda em um quarto escuro com medo de ser reprovada por um círculo social ingrato e injusto. Olhando assim, de longe, parece que eu me perdi e não saiba muito bem o que estou fazendo de uma vida que caminha em direção ao Portão do Inferno, sempre olhando para o abismo real que suga almas sem esperanças. Talvez, de fora, tenha alguma razão. Afinal, a vida é para ser gasta.  É por isso que olho para você e percebo que a beleza que já vi sob o sol de agosto parece estar murchando com o peso de tantos p...

Entre camadas

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Foto: Queen Mother Pendant Mask: Iyoba. Met Museum Sob as várias camadas de padrões comportamentais exigidos no trabalho, na organização religiosa, nos círculos sociais físico e nos virtuais, quem é você? Quantas enfermidades, físicas e mentais, você desenvolve apenas por fingir, continuamente, ser quem não é? Seus preconceitos, suas vaidades, seus defeitos, suas idiossincrasias negativas, seu lado negativo, seus arremedos intelectuais, seu fascismo interior, seu nazismo cultural, sua cruzada pessoal em direção ao lugar seguro em que os horrores pensados podem ser verbalizados, sua projeção real distorcida e deformada é o que você é. Tudo isso é o que você é. Empurrar uma criança na rua que se joga ao chão fazendo birra, odiar os parentes velhos por toda uma vida de injúrias e opressões, orfanar-se de pais cruéis, detestar filho, desprezar animais, consumir como se não houvesse amanhã todos os bens úteis e inúteis possíveis, deixar-se viciar e ser viciado nos sexos, aduzir-se em pr...

A extinção do interessante

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Figura: Bronze statue of a man. ca. mid-2nd-1st century BCE. MET Museum As pessoas interessantes parecem ter desaparecido no mar de reações virtuais dos aplicativos de relacionamento. Tornaram-se extintas, ao que parece. E é esse movimento de extinção de pessoas interessantes o último bastião antes de nos tornarmos ignorantes social, política e estruturalmente. Viciadas em textos de, no máximo, dez caracteres e imagens explicitamente autoexplicativas, as pessoas são apenas números autômatos que reagem ao menor ruído. E sequer se dão conta disso. Não se vê mais paixões por obras literárias, músicas e letristas, leitura e releitura de pinturas, fotografias e filmes. O que se vê, produzido em linha e em um processo contínuo, é simplesmente a reprodução desproporcional e desconfigurada de produtos construídos para e com a artificialidade das máquinas.  E não que utilizar a máquina seja ruim. O próprio desenvolvimento humano requer novas ferramentas e novas formas de interagir...

Esperando o Diabo na segunda

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Obra: Bear Killing Bull. Antoine-Louis Barye. MET. É segunda-feira e eu espero que o Diabo católico me carregue enquanto eu durmo para poder olhar, seja lá de onde for, e poder dizer que acordei morto.  Espero que o Diabo me carregue atravessando a rodovia, com todo mundo vendo, em um espetáculo instagramável para que a passagem entre para os anais do imaginário popular por 5 minutos, enquanto o corpo arde no asfalto quente. Espero que o Diabo me leve enquanto aguardo para almoçar - por choque elétrico, surto de algum coleguinha desesperado, a queda do teto... Espero que, antes desse dia acabar, o Diabo me carregue e assim chegue a minha passagem para outro plano e depois para outro e para outro depois do próximo.  Espero mesmo sabendo que o Diabo não existe.

Pobretano I

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Ilustração de Gabriela Santos. Muita gente vive entre vielas e favelas. Uns olhando de suas Torres de Marfim, outros entre esgotos a céu aberto, mosquitos, fedores e pestilências diversas. Em comum ambos têm a incapacidade de ver a realidade como ela é, no nível exato de degradação e injustiça. À parte toda a política e mazelas sociais e econômicas do miserável, tem-se a peculiar situação em que da lama, literalmente, sai o estado da arte de se viver e, vez por outra, a comédia faz-se presente. Ontem mesmo limpei a casa e joguei, em duas grandes sacolas de lixo, materiais inorgânicos e que para mim não havia serventia. Como todo pobre, deixei para colocar o lixo na calçada à noite uma vez que sem orgânicos os gatos, cães e cavalos não iriam espalhar, como sempre, todo o conteúdo rua à fora. De repente, enquanto eu vagueava pela Internet ouvindo o Biquíni Cavadão, ouvi vozes, risos e gritos de crianças muito próximo. Saí à porta e me deparo com parte do meu lixo jogado n...

Um poema despretensioso

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Arte: Winter Trees, Reflected in a Pond, William Henry Fox Talbot. Met. Vermelho, Verde, Azul Vermelho O batom desnecessário da sua boca Os lábios que ornam um belíssimo rosto Os olhos que iram-se e choram As Lágrimas que não eclodem A paixão incontida A incontinência do tempo Azul, Verde, Vermelho Verde Que não são dos olhos teus - e que bom que não são teus olhos verdes A grama que chama-nos ao sono ou à carícia O carinho que nos adormece A dormência do prazer O gozo da felicidade Verde, Azul, Vermelho Azul Do seu Céu Da sua íntima roupa Dos fios do seu pudor Despudorada inteligência Azul sem tom Tom sem Jobim Vermelho, Azul, Verde Cada cor em sua pele A cútis de agrado aos olhos Os olhos que sorriem Aluz dos olhos A janela do Arco Ora íris, ora Ília