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Porta-Estandarte

Embora o mundo não canse de ser indiferente e aprendamos com ele a arte cruel da indiferença, continuamos seguindo em frente, olhando para o além, mesmo sem esperança ou perspectivas. Gostaria de abrir a minha porta e olhar as nuvens carregadas com a admiração de alguém que descobre algo novo; gostaria de ficar acordado esperando o raiar do dia na ânsia de poder ter a alegria de começos e recomeços. E seria uma alegria ter a ingenuidade ignorante daqueles que em tudo creem, mesmo diante das maiores estupidezes. No entanto, o que tenho é o oposto disso tudo porque aprendi com propriedade tudo o que o mundo quis ensinar-me. E ele me ensinou a apatia, a indiferença e a melodiosa audácia das propagandas mentirosas.  Está, a desfilar na rua, a segunda-feira. E eu sou o porta-estandarte da ironia. E isso é tudo o que há para contar quando o sábado terminar.

Blasé

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Lá fora chove lágrimas de famintos que trabalham diariamente em ocupações blasfemas. Lágrimas de quem não pode comer bem para não ofender ao patrão. Chove gotas de sangue de favelados, de pretos, de pobres, de não-héteros, de mão-de-obra barata, de gente. Sangue que lava ruas sem saneamento básico e o chão de supermercados erguidos para a pseudo classe média. Lá fora tem a bebida, o sexo, a droga ilícita.  Lá fora tem a vida.

Poema cansado

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Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Que me falte cãibras Que me falte sossessogo Que me falte esperança  Que me falte alimento Que me falte a paixão  Que me falte o vil metal  Que me falte a felicidade Que me falte o estar  Que me falte o ser Que me falte o lugar Que me falte o amigo Que me falte a poesia Que me falte a energia Que me falte o amanhã  Mas que nunca me falte a ousadia de ter coragem.

Amor em oito mãos

É entendível ter três mulheres, em cidades diferentes, com aspectos culturais e físicos ímpares. Uma tem a cor da terra agreste, embora a delicadeza torne-lhe ainda mais bela à luz do sol nascente. Outra tem o frescor da noite, manhosa como uma fera em rara descontração. E a terceira possui o vigor de dez furacões em terras virgens de intempéries tão violentas. Quando sua casa é o mundo, o abraço terno e forte faz-se presente em braços coloridos, de nomes diferentes, com desejos desiguais. Há orações no almoço. Há lascívia na sesta. Há paixão bruta no amanhecer. Pode ser que alguém brade que isso seja só safadeza. Pura maldade com o coração nada romântico delas.  Elas sabem, mesmo que não digam, que é preciso mais de uma mão sobre a carne que lhes pertence em rateio.  Sim, elas bebem o mesmo leite, amassam a mesma carne, batem no mesmo lombo.  E isso é o amor em faces diversas.

A felicidade masculina

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O banheiro está livre. Vazio. Um entra. Desabotoa a calça. Espera.             Espera.                          Espera. Outro entra. Olha ao redor. Observa o ser à frente. E aproxima-se. Toca-lhe o ombro. O primeiro vira-se.  Falo em riste. A porta se fecha. Os homens são felizes                                       Somente em banheiros públicos.

A normalidade da rodoviária

Faltam poucos minutos para a hora da Ave Maria. A luz piscante da rodoviária tentar deixar o ambiente sombrio. À minha frente uma mulher, ao telefone, indigna-se com o relacionamento em colapso em controlada indignação. "Já são dois finais de semana...não acredito no que eu tô ouvindo..." Explicações vazias são dadas. Um romance falido encerra a ligação. E somente a falta, apenas a falta (seja lá do que for) mantém a criatura sentada, passiva e alheia ao que poderia acontecer se tivesse o ânimo para ser o auto-preenchimento emocional que tanto busca e precisa. Os mosquitos começam a aparecer e o frio está insidioso na rodagem, querendo entrar portão a dentro. É sábado. É o fim.

I know, você sabe

Eu sei e todos compreendem que no caminho há seculares desafios, opressivas opiniões, ditadores mal-quereres. E se não há armas suficientes para lutar contra tudo isso, que pelo menos tenhamos a maleabilidade necessária para evitar a desnecessária batalha. Hoje faz sol. O ônibus está mais vazio e embora a mala caiba pouca coisa, tentei levar o básico e deixar as dúvidas e pseudo entraves que tentam me acorrentar. Talvez chova, não sei. A Bahia é grande e cabe muitas identidades. A minha é agreste. Eu sou agreste.  Eu sei. E agora você sabe também.