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A normalidade da rodoviária

Faltam poucos minutos para a hora da Ave Maria. A luz piscante da rodoviária tentar deixar o ambiente sombrio. À minha frente uma mulher, ao telefone, indigna-se com o relacionamento em colapso em controlada indignação. "Já são dois finais de semana...não acredito no que eu tô ouvindo..." Explicações vazias são dadas. Um romance falido encerra a ligação. E somente a falta, apenas a falta (seja lá do que for) mantém a criatura sentada, passiva e alheia ao que poderia acontecer se tivesse o ânimo para ser o auto-preenchimento emocional que tanto busca e precisa. Os mosquitos começam a aparecer e o frio está insidioso na rodagem, querendo entrar portão a dentro. É sábado. É o fim.

I know, você sabe

Eu sei e todos compreendem que no caminho há seculares desafios, opressivas opiniões, ditadores mal-quereres. E se não há armas suficientes para lutar contra tudo isso, que pelo menos tenhamos a maleabilidade necessária para evitar a desnecessária batalha. Hoje faz sol. O ônibus está mais vazio e embora a mala caiba pouca coisa, tentei levar o básico e deixar as dúvidas e pseudo entraves que tentam me acorrentar. Talvez chova, não sei. A Bahia é grande e cabe muitas identidades. A minha é agreste. Eu sou agreste.  Eu sei. E agora você sabe também.

A estrutura social

Quando entramos em contato com os trabalhadores do nível operacional, e cotidianamente precisamos fazer isso, deparamo-nos com robôs humanos que recebem um parco pagamento para manter a engrenagem do ecossistema ao qual pertence funcionando. E problemas estruturais de uma sociedade pobre e doente são perceptíveis: meios de transporte precário, alimentação regradíssima (ao cúmulo de quase faltar), nível de formação acadêmica duvidoso e criação e manutenção de castas entre esses mesmos trabalhadores. O resultado é óbvio: clientes insatisfeitos, serviços inconclusos ou terminados aos tropeços, visão de faturamento e nenhuma visão de capital social, além de uma gestão temerária.  Não pense, no entanto, que isso é novo. Não é.  Nesta colônia que fingimos ser um país independente, o Brasil, temos uma massa de escravizados que se mantém na senzala moderna, com energia e internet apenas. Uma infeliz e triste realidade que não se pode, ainda, ser ultrapassada devido à crença de que o c...

O trabalho: uma relação de paixão

Há momentos em que precisamos de uma reflexão realista sobre o motivo da nossa desmotivação no trabalho, pois, como em um relacionamento qualquer, só a paixão e o ambiente não bastam. É preciso mais. Um pouco mais. É preciso que o riso não seja visto como uma ofensa; que o crescimento do outro não seja tido como uma ameaça; que momentos de coleguismo sejam incentivados e que as relações interpessoais sejam efetivamente sinceras e verdadeiras (sempre dentro da realidade exposta).  Isso não é utópico, não é inalcançável e nem distante do nosso dia a dia. E é preciso muito pouco para vivenciar isso em nossa rotina laboral: basta apenas a ousadia de encarar o ser humano da mesa ao lado com respeito e ouvir quando se deve ouvir.  É possível a liberdade religiosa e sexual no ambiente de trabalho desde que dentro da atmosfera de respeito. E só dentro dela. Infelizmente a deficiente formação acadêmica e pessoal do indivíduo não permite que tenhamos um ambiente assim,  constante o...

Dia 05

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Você não sabe, mas as pedras soltas da rua; Os cactos da beira da estrada; O boi pastando perto da cerca; O pedinte da rodoviária; O fiscal de postura da feira; A professora grávida; A atendente da churrascaria do posto; O dono do barzinho; O diretor da Funasa; O meu diário; A minha Senhoria; Os vizinhos da outra rua; Os desconhecidos das redes sociais; As pessoas dos ônibus lotados; A  vendedora de pastel da esquina; Os familiares esquecidos; O seu namorado; Todos sabem que o meu motivo é você. Só você não entende que nesse mundo redondo nós acabaremos juntos, mesmo que eu me demore no norte e você, no sul, perca a hora.

Visão míope

De baixo para cima é possível ver tudo: A fome; A violência; A hipocrisia social da classe média; O terror do abandono; O crime batendo à porta; O descaso; A morte em vida. De cima, tudo é lindo. Todas as questões se resumem em "força de vontade", "cultura da preguiça do pobre", "dinheiro mal gasto com pobre". O problema é quando quem está embaixo crê estar com visão panorâmica. E esse tem sido a triste sina metrópole brasileira que nunca deixa de se enxergar como colônia.

Na altura de Paiaiá

Nesse pedaço de chão, observando passivamente as casinhas perdidas e os caminhos de terra, sinto-me um retirante em busca da fé, como aconteceu não muito longe daqui e que hoje é só água. A noite começa a cair e o mundo tem aquele tom colorido que não sabemos descrever e que, por falta de expressão melhor, chamamos de melancólico. Dependendo de quem olha, o pasto se cobrindo de noite que vejo pode ser uma seara mística e ritualística como também pode ser lacrimoso cenário. A vida não é fácil - para mim que não tenho paradeiro; para esse povo que só conhece o sol e as duras mãos do poder; para você que vive tão longe de si. Para onde vou ninguém me espera. Por isso a pressa não está em minha bagagem e por mais que eu me atormente com a minha histórica pobreza material, há uma dormência onde nada tem importância e eu, sendo também o próprio nada, entendo a minha importância em cada instante e em cada lugar. Linhas de transmissão de energia elétrica alimentam seus fios e botões e servem, ...