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Crônica de uma vida insuficiente XXV

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Tem horas, muitas até, que bate o desânimo e a desesperança. São tantas injustiças, tanta crueldade, tanto querer insatisfeito que chega a sufocar e a nublar o futuro e o presente. Nessas horas a fé é questionada. E nesse embalo entram indagações sobre o objetivo de  cada ação, de cada conquista,  de cada esforço. E ninguém pode ajudar porque isso é tão íntimo que chega a ser inútil qualquer tipo de explicação ou consolo. A vida sempre é insuficiente nesse vale de lágrimas. Nela sempre há de faltar o que a inveja deseja, o que o ciúme avara, o que a mesquinhez persegue. E sempre haveremos de querer, como o Devorador, do que é do outro.  Nunca satisfeitos, a vida segue insuficiente.

Uma Terra Estrangeira I

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Avalie que a vida tem das suas revoltas e reviravoltas. E aqui, numa terra já pisada por muito (antes mesmo que esta zorra se transformasse em piada), parece haver de tudo. Há curvas que vêm dar em minha porta e um sol tão quente que parece frio. Um povo que tem uma fama de preguiçoso, mas que até agora todos que conheci têm dois empregos. Nessa terra de magia, fetiche e fantasia parece haver gostos secularmente peculiares e que eu vou demorar a provar para saber se gosto visto que são muitos. Mas avalie que a vida é isso mesmo - um estar em terra alheia até ser nossa também.

Trabalhador Brasileiro VI

Todos os dias, com chuva torrencial ou sol ardente,  com pestes diversas, o trabalhador brasileiro, amedrontado e subserviente, segue para o trabalho em ônibus lotados. Sentados próximas a ele estão a inflação, a Covid-19, as IST's,  a violência, a fome, o desprezo, a educação precária, os preconceitos, as humilhações e as escolhas para manter um status quo de assalariado que deseja ser chefe, opressivo, maléfico, cruel. O Trabalhador Brasileiro é o primeiro que morre. Substituição e dispensa certas sempre que a economia vai mal e cortes, nem sempre necessários, têm que ser feitos. Nem sempre vítima, mas sempre motivo da manutenção dos grilhões que aprisionam as gerações presente e futura, o Trabalhador Brasileiro teme a fome, mesmo passando fome todos os dias.  É massa de manobra voluntária. Rebotalho de gente. Opróbrio do capitalismo. O Trabalhador Brasileiro mantém uma estrutura de poder que o extingue aos poucos. E ele parece gostar disso. 

Crônica de uma vida insuficiente XXIV

 É meio-dia.  A vizinha da frente, como de hábito, está na porta, solitária, olhando uma rua que a ninguém interessa - seja pelo lixo, seja pela inexistência de algo interessante. Ela fica sentada à porta sempre que a cerveja acaba e os amigos de copo se vão.  Uma vida baseada em agradar para não ficar sozinha é inútil, triste e deprimente. O rosto está queimado pelos raios de um sol inclemente. Suas expressões, embrutecidas pelas ressacas e por sonhos não satisfeitos, derretem com o passar do dia. E mesmo a música, a carne assando na churrasqueira e a cerveja, nas várias vezes que promove  seu sadio divertimento não são capazes de alegrar, o coração e a alma, desse periférico cotidiano. Um dia ela vai morrer e o que terá para deixar como lembrança? O álcool, os amigos, as carnes digeridas - nada será seu epitáfio.  

Carta a um Ausente II

Hoje aquela cantora tocou na playlist aleatória. E cantou aquela música. Onde você estiver, com quem estiver, espero que esteja bem, fazendo o que gosta. De minha parte eu tento, embora nem sempre consiga (ou consiga e eu esteja sendo apenas ingrato, como sempre).  Sim, sem fotos e sem áudios.  O meu rosto não continua o mesmo. Um pouco mais velho e um pouco mais tratado.  A minha voz, sempre a mesma decepção.  De novidade tem a vida, que não para, não estagna, apesar dos esforços de alguns em me diminuir à mediocridade deles. Os medíocres sempre tentam boicotar os diferentes e os que não querem mais. O preço por não se curvar a injustos e medíocres nem sempre é barato, mas sempre vale a pena. Hoje não choveu e o casal do dendê me abençoou hoje. Saravá! Peço que ouça Onde estará o meu amor , na belíssima voz de Maria Bethânia. Dessa bela canção você entende o resto. 

Crônica de uma vida insuficiente XXIII

O chão da sala amanheceu com os resquícios do amor saboroso e com a história dos viventes contados pelo lixo comum. Fios de cabelo, pelos brancos e pretos, algodão e forma de disco, palitos de fósforo, tiras de sacolas plásticas. Esse chão já viu dias piores. Lágrimas, brigas, desentendimentos, restos de comida, esperança e desespero. E se ainda resiste é porque resiste também a fé humana em pessoas, mais nas mortas que nas vivas. A cama continua bagunçada e o feijão preto está no fogo, cozinhando também o tempo. A vida é isso. Não apenas isso, mas isso também. A vida está nos pesos que arrastamos de um lado para outro, nos momentos inexpressivos, nos sonhos refeitos, nas reclamações, no bofe revirado pela intolerância. A pia está quase limpa. E mesmo tendo visto dias melhores, apoio para um fogareiro de duas bocas, vai ficar para trás, como testemunha do pedaço de vida que termina aqui, em mais uma história que prossegue sem tempo para cuidados desnecessários com o que é alheio. Os tê...

Carta a um Ausente I

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Hoje choveu. Demorou e quase não quis, mas choveu. Você não sabe: meus vizinhos estão dando um jeito de tomar cerveja e ouvir música (aquele tipinho de música) apesar de tudo. Não sei como os pobres desse calibri conseguem comprar tanto álcool e se iludir assim. Eles conseguem. E é um mistério para mim. Não sei onde você anda e espero que no esconde-esconde da vida acabemos trombando por aí, apesar de que o meu fim esteja próximo (a idade e as pestes chegam para todos). Ainda está chovendo. Daqui a pouco para.  Espero que onde você esteja o céu esteja limpo e com estrelas brilhantes.