Nego Ciço
Às quatro horas, seja de uma manhã fria ou suarenta, Nego Ciço já está de pé, com suas ferramentas, olhando para os olhos grandes e expressivos do boi. Sem dó nem piedade, estados de coração que há muito perdera e que jamais reencontrará, ele lança-se sobre o animal, tira-lhe a coragem e imbue-se com ela; baixa o braço magro e poderoso sobre a cabeça bovina, arrancando-lhe a vida.
Olhando assim, como um mero observador enojado pela vida que pulsa nas veias de Nego Ciço e que deixa o corpo animalesco, poderia dizer que o homem é feroz sem necessidade, devorador implacável, no sentido mais cruel das palavras.
E pensar isso, assim como vomitar em meio ao sangue e às vísceras de mais um boi, é a mais absurda das hipocrisias sociais.
Lá, onde o sangue muda a tonalidade das sandálias havaianas (muitas com um prego), Nego Ciço não entende a besteira de não poder ser chamado de 'nego'. Entende apenas que lhe pertence alguns reais, ainda na forma bruta de músculos, pontas, tripas e bofe.
E isso é tudo. Isso é o começo de mais um sábado.
"Sempre fui nego, fodido na metade da vida, um pé na desgraça e outro na cachaça" repete Nego Ciço todo dia, no bar da esquina de casa (um 'pega-bebo' onde a maioria da clientela já tem os pés inchados pela branquinha). E Ciço tem razão.
Banho tomado, roupa trocada, garganta ardente às oito, Nego Ciço vai subindo a ladeira da feira, marchando com certa jinga para o mercado da carne. Atrás, como um rastro de cobra na areia, o fedor vai deixando caras amarradas e cusparadas muito bem acompanhadas de palavrões. O Nego nem se vira mais para olhar a ofensa. Tornou-se imune a isso do mesmo modo que deixou de sentir o fedor de cru do matadouro.
Sentado atrás de uma pilha de fato, com moscas azuis sobrevoando o chão molhado e a mercadoria, ele vê a carola comprando fígado, a dona de casa torcendo a cara para um músculo, uma velhinha pedindo uns trocados.
Sentado em meio à carne ele pensa na Zefa, a puta do bar atrás do mercado da carne e em como ele pode vender tudo logo e passar o resto do sábado bebendo doses de cachaça enquanto Zefa lhe faz feliz.
Nego Ciço ri. E antes que pisque os olhos o dia acaba com Zefa abraçada ao litro de pitu, dormindo em seu peito.
Lá fora, na cidade coberta pela noite, Nego Ciço sabe que sua carne, suas vísceras, seu fedor foram condimentados e serve para sustentar corpos tão ingratos quanto os muitos deuses de igrejas tantas. Ele sabe que nem ser chamado de Nego pode mais. Mas sabe que sem Nego não há carne, não há paz, não há cidade.
Nego Ciço fecha os olhos, acaricia os cabelos de Zefa e se prepara para mais um dia.
Olhando assim, como um mero observador enojado pela vida que pulsa nas veias de Nego Ciço e que deixa o corpo animalesco, poderia dizer que o homem é feroz sem necessidade, devorador implacável, no sentido mais cruel das palavras.
E pensar isso, assim como vomitar em meio ao sangue e às vísceras de mais um boi, é a mais absurda das hipocrisias sociais.
Lá, onde o sangue muda a tonalidade das sandálias havaianas (muitas com um prego), Nego Ciço não entende a besteira de não poder ser chamado de 'nego'. Entende apenas que lhe pertence alguns reais, ainda na forma bruta de músculos, pontas, tripas e bofe.
E isso é tudo. Isso é o começo de mais um sábado.
"Sempre fui nego, fodido na metade da vida, um pé na desgraça e outro na cachaça" repete Nego Ciço todo dia, no bar da esquina de casa (um 'pega-bebo' onde a maioria da clientela já tem os pés inchados pela branquinha). E Ciço tem razão.
Banho tomado, roupa trocada, garganta ardente às oito, Nego Ciço vai subindo a ladeira da feira, marchando com certa jinga para o mercado da carne. Atrás, como um rastro de cobra na areia, o fedor vai deixando caras amarradas e cusparadas muito bem acompanhadas de palavrões. O Nego nem se vira mais para olhar a ofensa. Tornou-se imune a isso do mesmo modo que deixou de sentir o fedor de cru do matadouro.
Sentado atrás de uma pilha de fato, com moscas azuis sobrevoando o chão molhado e a mercadoria, ele vê a carola comprando fígado, a dona de casa torcendo a cara para um músculo, uma velhinha pedindo uns trocados.
Sentado em meio à carne ele pensa na Zefa, a puta do bar atrás do mercado da carne e em como ele pode vender tudo logo e passar o resto do sábado bebendo doses de cachaça enquanto Zefa lhe faz feliz.
Nego Ciço ri. E antes que pisque os olhos o dia acaba com Zefa abraçada ao litro de pitu, dormindo em seu peito.
Lá fora, na cidade coberta pela noite, Nego Ciço sabe que sua carne, suas vísceras, seu fedor foram condimentados e serve para sustentar corpos tão ingratos quanto os muitos deuses de igrejas tantas. Ele sabe que nem ser chamado de Nego pode mais. Mas sabe que sem Nego não há carne, não há paz, não há cidade.
Nego Ciço fecha os olhos, acaricia os cabelos de Zefa e se prepara para mais um dia.
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