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O vivente da barra da manhã

 Ultimamente o sol nasce entre dizeres e brisas à rua. Às vezes com a presença de desvalidos sob marquises e, em outras vezes, com o caminhar lento de felinos perscrutando os resíduos da noite comercial anterior. Hoje mesmo, quando a barra da manhã já apresentava os sinais de um colorido primaveril e escorpiano, uma criatura mal-humorada rompeu pela rua, chutando o lixo, xingando os animais vagabundos, omitindo-se a saudações. Uma criatura que deve ter se revoltado com a cena matinal, nada explícita, menos ainda implícita. Talvez a revolta seja por uma vida inteira de trabalhos humilhantes e de um cotidiano mecânico, quadrado, ditado pelas convenções sociais e religiosas. Faltando-lhe carnes sobre os ossos, sobrando-lhe amargor, quem nunca foi, um dia, como tal vivente? Um dia qualquer. Uma manhã nascente não costumeira.  Sem sexo, sem explícitos, faltando implícitos - um dia na viada vida periférica que se acomoda entre quereres e transtornos.

Automediocrização humana

  É possível entender o medo das pessoas em relação à Inteligência Artificial. Capaz de criar imagens, escrever textos científicos referenciados, e escrever as citações na ordem em que surgem no texto, a Inteligência Artificial, já presentem em diversos sites tem se tornado uma ferramenta e uma ameaça àqueles que veem na facilidade das Máquinas um caminho sem esforço e sem dores de parto dos trabalhos, hoje humanos. A quem pertence os direitos autorais? Até onde vai a "criatividade" da Máquina? Até quando ser humano será necessário? Talvez a questão não seja onde o homem terá lugar. Mas até que ponto este se deixará mediocrizar pela Inteligência Artificial. Para exemplificar o que, para alguns, ainda não se situou nessa discussão, segue abaixo uma crônica escrita pela Inteligência Artificial. Julgue-a. "Era uma manhã ensolarada em São Cristóvão, uma pequena e charmosa cidade no estado de Sergipe. O céu azul contrastava com as casas coloridas e históricas da região, crian...

O assunto e o motivo

 É sempre sobre domínio e poder.  Não é sobre a imortalidade da alma, um paraíso - aquele lugar idealizado e idolatrado. Não é sobre um possível amor ao próximo - se tal amor e tal próximo sempre são selecionados, direcionados, excludentes. Não é sobre uma paz com animais selvagens e ferozes - se é o homem o mais feroz e atroz dos animais. Não é sobre continuar a humanidade em famílias com gêneros diferentes e crianças saudáveis - se é essa concepção que abandona bastardos à própria sorte em rodovias e esquinas diversas.  Não é sobre ilusões que remetem a um falso deus, morto em toda porta comercial.  É sobre o poder político e econômico. É sobre dominar o outro até mesmo onde lhe é mais íntimo, pessoal e particular. É sobre retirar a humanidade de infelizes vítimas de estruturas sociais degradantes e crueis.  E nada além disso. 

Além da fronteira do amor romântico

 Há eventualidades que o amor romântico ocidentalizado jamais alcançará. Questões básicas de não colonização do outro que foge completamente aos axiomas de uma sociedade pautada na posse, na propriedade e na dominação do outro e de suas preferências.  Dono de si, o outro dispõe de vontade que, às vezes, é soterrada em escombros de deveres, afazeres, aparências e quereres alheios. Extirpado de sua verdadeira natureza, esse outro, não raro e por períodos consideráveis de tempo, acaba esquecendo quem é e qual seu papel no contexto social no qual está inserido. O amor romântico ocidentalizado, onde o sexo tem regras rígidas e paulatinamente ensinado indiretamente em escolas e hipocritamente renegado em espaços pseudo religiosos, é uma flâmula hasteada em pleno mar seco, onde a vida é incapaz de prosperar.  Em certas madrugadas, onde nem mesmo o homem consegue inventar um deus onipresente e mítico e as fronteiras desse amor romântico acabam, somente as eventualidades de uma vi...

Da inanição de afeto

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Arte: Stole. first quarter 19th century. Met.   Não é que perdemos o jeito de dar, receber e cultivar afeto. Simplesmente não sabemos mais - se é que algum dia, de fato, tivemos a chance de estar em estado de afeto. Antes teve aquela época em que pessoas muito violentadas, física e/ou psicologicamente, criam em um pseudo afeto por meio das redes sociais. Depois, ou conjuntamente, passamos a publicar certas demonstrações de afeto. Agora, contaminados pela falsa ilusão promovida pelas redes sociais, estamos armados contra o que chamamos de afeto.  Ao menor sinal, sumimos. À menor gentileza ou cortesia, desafiamos a um sanguinário duelo quem ousa ser gentil ou cortês na vida real - não dá tempo para fotografar e postar.  O afeto tornou-se um dos demônios católicos que assedia sem provocação. E seguimos um caminho pedregoso e espinhento que a nada e a ninguém protege.  Estamos áridos, morrendo por dentro, sem sangramentos, sem feridas expostas, sem marcas visív...

Imprecisões naturais da vida

 Comecei o dia comendo um sonho. Agora dos outros porque não tenho mais sonhos. Os meus ficaram presos nos cactos das áridas caminhadas que fui obrigado a fazer nos últimos anos - um dia desses eu me descobri sem prazer em pequenas rotinas que antes eram tão satisfatórias; o sexo tornou-se tão banal (será por causa da facilidade e da oferta?); a comida restringiu-se ao seu papel de fonte de energia... Na minha taça, como ontem, antes das sete horas da manhã, coca-cola.  Na minha cabeça, Raul Seixas cantando. Na minha mão, uma dor que surgiu depois de um sexo em má posição de semanas atrás.  Hoje eu não tenho lugar. Não tenho planos. Não tenho mais pressa.  Hoje eu estou apenas esperando o milagre das imprecisões naturais da vida.

A suavidade da chuva outonal

 Abro a porta e vejo a linda luz de início da manhã cintilar nas gotas de chuva outonal. Não está frio e tomo uma coca-cola (porque a vida é breve e pobre morre cedo de qualquer coisa mesmo). Inspirado, coloco no reprodutor Chove Chuva na versão do Biquíni Cavadão. Os problemas solucionáveis e pueris estão embaixo da pia, a espreitar-me, rancorosos porque resolvi não lhes dar atenção.  A chuva está sensível, meiga, como Oyá em tempos de paz.  Eu estou acordado desde a madrugada, sem percepções entorpecidas, sem sonhos insolentes, sem sono naturalmente esperado. Todos os que não precisam trabalhar estão em casa, abrigados, agasalhados. Meu vizinho, mão de obra barata da construção civil, saiu cedo quando a chuva era uma pausa em mais uma manhã.  Daqui a pouco os garis irão despontar na esquina recolhendo os resíduos sólidos urbanos de uma centena de gente que sequer valoriza o fato de a rua ser limpa sob chuva em uma manhã como essa.  Essa chuva me lembra Ela, Oy...