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Imprecisões naturais da vida

 Comecei o dia comendo um sonho. Agora dos outros porque não tenho mais sonhos. Os meus ficaram presos nos cactos das áridas caminhadas que fui obrigado a fazer nos últimos anos - um dia desses eu me descobri sem prazer em pequenas rotinas que antes eram tão satisfatórias; o sexo tornou-se tão banal (será por causa da facilidade e da oferta?); a comida restringiu-se ao seu papel de fonte de energia... Na minha taça, como ontem, antes das sete horas da manhã, coca-cola.  Na minha cabeça, Raul Seixas cantando. Na minha mão, uma dor que surgiu depois de um sexo em má posição de semanas atrás.  Hoje eu não tenho lugar. Não tenho planos. Não tenho mais pressa.  Hoje eu estou apenas esperando o milagre das imprecisões naturais da vida.

A suavidade da chuva outonal

 Abro a porta e vejo a linda luz de início da manhã cintilar nas gotas de chuva outonal. Não está frio e tomo uma coca-cola (porque a vida é breve e pobre morre cedo de qualquer coisa mesmo). Inspirado, coloco no reprodutor Chove Chuva na versão do Biquíni Cavadão. Os problemas solucionáveis e pueris estão embaixo da pia, a espreitar-me, rancorosos porque resolvi não lhes dar atenção.  A chuva está sensível, meiga, como Oyá em tempos de paz.  Eu estou acordado desde a madrugada, sem percepções entorpecidas, sem sonhos insolentes, sem sono naturalmente esperado. Todos os que não precisam trabalhar estão em casa, abrigados, agasalhados. Meu vizinho, mão de obra barata da construção civil, saiu cedo quando a chuva era uma pausa em mais uma manhã.  Daqui a pouco os garis irão despontar na esquina recolhendo os resíduos sólidos urbanos de uma centena de gente que sequer valoriza o fato de a rua ser limpa sob chuva em uma manhã como essa.  Essa chuva me lembra Ela, Oy...

Visitantes

 É engraçado como as pessoas gostam de visitar. O visitante não tem responsabilidade sobre a as deficiências estruturais da casa ou rua alheia. Não lhe interessa para onde vai o seu lixo e os mendigos e animais de rua possuem até uma quê de exótico. O visitante pode gastar sem modéstia porque convenhamos, são apenas alguns dias ou horas. Não vê a favela, o pobre, o transporte precário, as crianças descamisadas brincando na rua por falta de opção e até mesmo alguns disparos de arma de fogo é só um requinte auditivo que floreará sua história quando estiver de volta à sua origem. O visitante é, ao mesmo tempo, um colonizador e um colono, brincando de dono do capital, de político e de nativo. E sob a sua influência as comunidades são modificadas, a cultura depravada, o povo degredado. Nada e nem ninguém lhe importa.  Os momentos que vive são mágicos. 

No vale de idiotismo

 Vamos crescendo e entre chibatadas "educadoras", chacotas "inocentes" e sonhos capitalizados acabamos tornando-nos insensíveis e avaliadores do outro com certa malícia necessária, embora muitos não consigam escapar das armadilhas sociais.  É assim que se reconhece o cretinismo senil dos evangélicos, aquelas mulheres que usam o útero como meio de vida por meio da geração de criaturas infelizes e dos homens que acham na toxicidade de comparações penianas disfarçadas de certos "sucesso".  E como escapar? Nem sempre dá. Às vezes só dá para escapar sendo bem cretino e em outras sendo patriarcalmente preconceituoso.  É isso ou se render às imbecilidades de um cotidiano deplorável.  Ali na frente mesmo, a múmia evangélica crê que se falar o nome de uma certa deidade ficcional poderá ser salva da lama do pós-vida que a espera. Confrontada com essa realidade, fica ofendida - mais com o fato de que vai servir como adubo do que com a negação da falsa deidade.  Na ou...

Item de massa necessitada

 Somos condicionados a desprezar o descanso em prol de uma rotina atarefada e desnecessária. Sem questionar o que, efetivamente, precisamos e sem nos entender no contexto social, sempre pessoal e particular, vamos consumindo filmes por osmose, música ditada pelo "gosto popular", itens pessoais em alta na moda do momento. Acabamos nos tornando apenas mais um integrante no vasto mundo da produção em massa cuja única particularidade é escolher um tom de cinza.  É madrugada e a maioria dorme com o peso de ter que acordar bem cedo, daqui a pouco, pegar algum alimento e partir para o ponto de ônibus ou metrô para ir a empregos que pagam mal, são psicologicamente agressivos e que não satisfazem os desejos mais básicos, segundo a pirâmide de Maslow. Alguns, principalmente os chefes, hão de dizer que é melhor do que nada. Será? E é melhor para quem? Pagamos um preço muito alto pela rebeldia de viver do modo que se quer e precisa. E um preço ainda mais alto por sobreviver do modo que o...

O outono de Áries

 O outono começou lavando a rua, os telhados, os pés cansados de tantos andarilhos-em-circulo. A água revelou goteiras nunca antes vistas, a necessidade de mais roupas de cama e preocupações diferentes.  O outono anda escondendo Áries, sentida por todos, tendo eles conhecimento disso ou não. Mais cedo, ali na praça, uma colisão entre dois veículos foi a atração rueira. Um pouco antes e em direções opostas, duas outras colisões chamaram a atenção dos transeuntes.  Um pisciano reclama da má sorte, um escorpiano anda arisco, um ariano anda...bem, como sempre anda um ariano. Agora ouço a chuva e não sei se pagaram um boleto necessário e dúvidas persistem sobre outras ordens de pagamentos. Um dia de cada vez, é o que nos pedem.  Pode ser que nesse outono tenhamos frutas mais baratas e amores mais populares - é essa a esperança do pós-pandemia. O que se pode saber, com precisão, é que Belchior, nessas madrugadas pensantes e tão chuvosas, é ainda mais fundamental.

Crônica de uma espera

 Ontem o céu rugiu. Parecia um leão que não sabia se dormitava ou acordava de vez para rondar o território da caça. Nuvens de chumbo precipitavam-se em momentos inesperados. Para além disso, nada. Nas cidades do interior ruas inteiras com feiras livres. Na capital, os shoppings. Na rodovia que faz esquina com a rua uma corrida anual se desenrolava.  Entre paredes nada disso importa - novos demônios subjugando antigos fantasmas, vergonhas diversas dentro dos bolsos, olhos cansados e boca cerrada pelo peso de uma vida errante. Entre as paredes ouve-se os pingos da chuva, o rugido do leão celeste, o silêncio na casa vizinha, a vida desgraçada que se leva por força das circunstâncias. Hoje o céu está limpo e vidas diferentes interagem entre si no outro lado da parede. Deste lado não há vida. Apenas uma espera que nunca acaba.