Postagens

Sempre agrestes

Imagem
Foto: Rafael Rodrigo Marajá.  Meu bem, paisagens agrestes sempre lembrarão os dias de agosto quando um sol quente era abrandando pelo sopro frio das serras em terras tão distantes, embora igualmente agrestinas. Vi cactos espalhados e rebanhos pastando sem pressa.  Vi casas lindamente danificadas pelo tempo e que se mantém de pé por obra e graça da resistência que habita em seus moradores. Vi cidades de nomes estranhos e povos de olhares questionadores - somente o literalismo que em mim defeitua pode explicar a beleza irracional disso. Vi tudo isso. E sei que você viu também, nos dias em que fugia buscando o novo por essas bandas. E nem mesmo o tempo e a distância entre esse nordeste do nordeste e a Baía de Todos os Santos podem tirar palavras gravadas a ferro e fogo do intangível livro dessa existência - por isso estamos também aqui, e aí. Ora veja, fiz contas erradas e me senti em casa e confortável tão logo cheguei, como você disse uma vez sobre mim e todos os lu...

Dia 04

Os olhos pesados. As últimas obrigações do dia, os animais do terminal da Zona Peste digladiando-se em seus mórbidos humores de gentalha, a chuva, o calor, a merda presa nos bifes, o livro sobre a cômoda, as dívidas chegando, o mijo saindo, a vida passando. É o dia quatro. É quase o meio do caminho. É tarde.

SO reiniciado

Imagem
Sistema reiniciado. Deixada para a má impressão a primeira vez nessas terras primeiras. O problema não foi o povo, a água, o trânsito. Foi a companhia, péssima. Diga-se, aliás, que em boa companhia até o tédio do silêncio das catedrais torna-se interessante e proveitoso. Então não dá para culpar o inanimado pelas experiências provocadas pela ação, direta e indireta, de certas e ruins companhias. O Pelourinho estava mais leve, a comida mais substanciosa e as portas mais abertas.  O sol menos quente e sem muita sede. Tudo mais rápido. Tudo mais leve. E com a vista para a baía de todos os santos, a certeza que Exu toma conta de um Orí em evolução.

Em trânsito reverso

Parado em Estância. A cidade mãe continua sendo o ponto de parada obrigatório do qual nada me livra, nem mesmo minha pressa ou sono fingido. A luz da precária rodoviária fere meus olhos e abala a minha forçada necessidade de dormir. De novo, parece até que Belchior compõe ao meu lado, penso em uma rede branca e um cachorro (mas sem mulher companheira, eu mesmo me basto, de tantos e variadas formas).  Estou voltando, não para ficar, porque mais de 400 anos depois de fundada São Salvador merece algumas chances de superar velhas-recentes e pessoais arestas.  E mesmo correndo o risco de parecer um repetitivo e cansativo clichê preciso admitir que volto igual, mas não o mesmo. Tenho ideia do meus branquíssimos fios de cabelo; das minhas limitações físicas (mais orçamentárias) e das minhas superações (que muito aumentam meu valor de mercado).  Não tenho ideia, ainda, do que poderei me tornar se os eventos aleatórios da vida me fizerem retornar apenas com outro ano de diferença....

Sem avisos

Um dia eu vou sumir, não aos poucos como uma fruta que se parte em pedaços e é engolida sem pretensão. Será de uma vez. Súbito. Não, não é estado de tristeza ou depressão que inflama essa afirmação. É um doce sabor de quem há de experimentar um arrebatamento cataclismico. De repente, não mais que de repente (como uma vez escreveu o poeta) eu sumirei em meio à multidão, sem ser notado, sem ser perturbado, sem alarde. E ficará, se alguém algum dia lembrar, como escreveu outro poeta, versos A um ausente. É só o que restará de mim pelas mãos de outro que me antecedeu. Um dia, eu sei, eu vou sumir.  E como não se destroi um império em um único dia, assim eu vou me fragmentando, acostumando os outros com pequenas ausências, silêncios enormes. E onde eu vou parar  ninguém sabe, nem eu, nem você, Olorum, de certeza, mas ele não vai contar. E vou viajar, como o Belchior fez duas vezes.

À francesa

Poucas sensações são tão boas quanto sair à francesa. Em um momento você está em uma empresa e, sem que ninguém se dê conta, você está rumando por outros caminhos. Em um instante você pode estar assistindo a uma aula presencial e, no outro, poderá está caminhando na orla sem que ninguém tenha percebido a mudança, além de você. Assim você poderá mudar de cidade, estado, profissão, relacionamentos tóxicos e destrutivos. Assim você poderá mudar, com ou sem medo. Sempre à francesa. Com requinte. Sem desgaste. Sempre em frente.

Trouxismo brasileiro

Há quem diga que o peso, da vida, seja mais leve quando é compartilhado. E pode ser que o peso seja mais fácil de carregar quando mais de uma pessoa faz a força necessária para levantá-lo e carregá-lo. Nunca vi isso acontecer, em nenhum, com  ninguém. E se nada é fácil para o brasileiro pobre, assalariado, menosprezado ainda que muito instruído, por que esperar que o peso de viver entre ruas sem saneamento básico e uma sobrevivência mal paga por empregos estafantes seja leve, ainda que compartilhada? Talvez o problema seja que aprendemos a romantizar a pobreza, as carências e a sobrevivência, crendo que sofrendo estaremos expurgando males dessa e de outras vidas. Uma ilusão conveniente para os donos do capital e de igrejas. Sozinhos, os brasileiros seguem o ritmo de suas reclamações sazonais, fazendo más escolhas, destruindo a si quando nada mais resta à fome implacável da destruição moral, material e espiritual. Quem sabe, em alguma coisa perdida no tempo e no espaço, o brasileiro...