Meus vizinhos nus

Foto: cen do filme Batman: o cavaleiro das trevas ressurge

Essa madrugada, como outras passadas, estava de frente para a janela que sempre me desvenda homens e mulheres nus, no outro prédio, cujas janelas da sala e dos quartos dão para a minha; dessa vez, graças a Deus, como em tantas outras, não foi pênis, bundas e peitos que vi. Dessa vez, como em tantas madrugadas passadas em que o sono me trai e incentiva-me a ficar acordado planejando dominar o mundo e certas mentes, planejando em não planejar para nada dar errado e o que acontecer ser sempre o certo, o que vi foram nuvens que se precipitavam, ameaçavam  desabar sobre o prédio velho e que, mesmo podendo, não o faziam. Vi os sonhos enferrujando do outro lado da rua enquanto no andar de baixo, entre lençóis, outros tantos deixavam de sonhar pela falta de coragem em mudar de vida e de rumo.
Esse mal, essa vontade de continuar a ser o mesmo todos os dias até o último, destrói tudo o que passa por perto. talvez seja por isso que o encanamento do prédio esteja em péssima condição de uso; talvez por isso que não se ouve gemidos e rangidos nesse prédio. O fato, se um fato existir de concreto, é que o ouro que meus vizinhos vestidos não conseguem - mesmo tendo algum sedã na garagem - alimenta o ostracismo do do edifício - e alegra as horas dos nus das outras janelas. E chego até a pensar que ninguém morre nos prédios, ou que a morte, para tantos deles, seja apenas uma questão de endereço e de falta de correspondência.
Do meu quarto ouço a fuzilaria... mas não é qualquer fuzilaria. É aquela de amores presos a convenções, cinemas e praias; presos ao sexo, fotos e nudez; amarrados em soleiras de portas que não abrem nem fecham direito; estagnados em corações que não sabem o que querem depois do gozo.
Do meu quarto, ao lado da avenida barulhenta e quente, sem teorias e despido de qualquer romantismo, vejo corpos nus que andam para lá e para, vestindo-se, chegando e indo dormir; vejo pessoas que repetem para si mesmas que uma bunda comida, um pênis duro e um número no whatsapp é tudo o que se precisa. Quando muito, da mesma janela por onde  a lua me ilumina nas noites de verão, que aqui é de dezembro a dezembro, também vejo uma tela gigantesca - que certamente meu vizinho não se deu conta, ou nunca soube, que TV's  obedecem a proporções de espaço - e que só transmite um canal chato de tragédia e de desagrado, mas que alimenta a alma pobre e sedenta pela desgraça alheia.. 
Então resta a mim, insone, desocupado, contar os amores de primeira e segunda ordem vividos, desperdiçados e desgastantes. Resta a mim, e quem sabe também à vizinha do andar de baixo que de vez em quando me dar a graça de vê-la, em olhar e comentar os amores alheios e aprender com eles - os amores alheios não são nada românticos, são mais feios do que se imagina.
Ah, lá vem  sol para me trazer o sono, o calor, mais gente nua, mais amores frouxos, mais notícias ruins vindas da televisão do vizinho do outro prédio. 
Asim, começa o samba.





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