21:01 - A loucura está no amor*

Quadro: Wheat Field With Cypresses. Vicent Van Gogh. 1889. MetMuseum

Um riso incontrolável inflamou-o peito a fora, brotando nos lábios e traduzindo uma explosão de felicidade louca e sem sentido, explicada apenas pela loucura e pela ausência de sentimentos, na estupefação da descoberta. Esperava gritar, no silêncio da dor, chorar, magoar-se, morrer uma segunda morte em vida em que se levantar da cama é simplesmente a tarefa mais difícil a ser desempenhada. E, no entanto, sorriu.
E sorriu por que viu. Sorriu para expressar um estado de espírito em que nada é capaz de abalar os alicerces de uma verdade sã, apesar de parecer louca, desregrada, incapaz. Sorriu para dizer a si mesmo que não importa: existe algo que não pode ser traduzido sempre, mas que está lá, esperando por uma brecha em ocasos, acasos e amores fabricados. Os lábios alargaram mais que um simples dizer de alegria; os lábios estouraram contra uma tristeza, contra uma forma agressiva de amar que oprime o coração através da alma e das palavras sussurradas ao vento.
E quando parece simplesmente que é uma maneira de esconder uma dor ainda mais pungente, massacrante, destruidora, vê-se dizendo a si mesmo que nada que se faz por alguém a quem se ama pode ser menosprezado; que por mais que o outro não compreenda e perverta suas palavras, a verdade estará sempre lá, apesar do tempo e dos desencontros; que não importa com quantos beijos se trace uma caçada, a vida supera o efêmero com a mesma facilidade que a água despenca do céu pesado; que embora possam existir indivíduos malfeitores tramando na escuridão da noite por meio de magias não tão negras assim haverá sempre um alguém que segurará a onda de problemas que advém de certas práticas; que não importa quantas lágrimas foram derramadas nem quantos modos de ofensa foram usados, há, simplesmente, a possibilidade de retornar a qualquer ponto da história e refazer os acontecimentos ou deixar tudo como ocorreu e partir para uma nova etapa, com novos ou velhos elementos, capazes de reordenar o futuro latente.
Não. O sorriso veio-lhe como uma bênção vinda dos mais profundos poços interiores trazendo consigo luz e clareza ao próprio modo de ver a vida e todas as suas teias. Veio-lhe mostrar que não são os quereres que fazem um grande amor nem os sacrifícios e que é o conjunto dos dissabores e desentendimentos vividos que geram uma cumplicidade e um amor simples, puro, possível, atraente e oscilante entre paixão e rotina.
E, sentado à frente de uma máquina luminosa, sorria para o inanimado como se aquilo pudesse atravessar a água, a distância, as barreiras pessoais e as pessoas e exteriorizar um turbilhão de sentimentos magnificamente bons e exageradamente alegres para mostrar que não importa: algo está feliz e bem como há muito não estava.
Os músculos não cansaram de humilhar a tristeza e a dor outrora vividas, tampouco tiveram medo de saudar todos os visitantes com um bom dia realmente sincero. E, assim, a noite reapareceu em seus olhos como a projeção de um cinema mudo, antigo e analisado sob a óptica do ridículo e do fantasmagórico. 
De repente estava deitado sob seu colchão desconhecido olhando pela janela, vislumbrando um céu negro ora frio ora incerto em suas cores. Com pensamento a rodear-lhe os mais íntimos lugares do inconsciente na busca por lembranças que arremetessem a uma época feliz e inesquecível onde a dor e a tristeza não existiam. Enquanto o consciente perguntava-se a razão de tão insistentes seres desenterrados. Entre um portão de madeira mergulhado na noite fria com dois seres a se conhecerem e uma tarde quente com doce escorrendo entre lábios em uma praça qualquer, surge a alvorada e suas cores primeiras cores do novo dia. E os olhos ainda estavam fixos no céu.
Indagações e rememórias fazem da noite o melhor conforto para o cansaço. E quando o sono aparece sob uma capa de requintados calores e preguiças, os sonhos vêm evidenciar aquilo que a fantasia, unicamente, é capaz de criar e dar vida. A noite, que antes se passava sob a égide de uma tormenta forte e interminável, transformou-se em simples momento de calmaria na qual as embarcações de um mar desconhecido sempre ancoram em um lugar diferente da margem, desembarcando pessoas, fatos, eventos. Pessoas que trazem baús fechados com amargura, ressentimento, escravidão. Pessoas mortas antes mesmo de a senhora de todo manto negro chegar.
E quando os olhos encontram uma luz, artificial, desligável, a realidade retorna ao seu posto deixando para mais tarde a rememória da noite vivida, mostrando-lhe que a imagem continua estática na tela. Uma imagem de dois seres desconhecidos, embora tenha a impressão de conhecer, e muito, um dos rostos.  A impressão de ter amado um dos rostos e por ele ter sofrido um inferno mudo. Impressão só?
Jurara não voltar ao abismo da perdição em que um dia se encontrara. Também jurara não querer mais a vida, se esta significasse o viver solitário. Jurara muitas coisas. Derramara muitas lágrimas. Escondera-se do sol quando músicas tocavam e quando a alegria pairava sobre outras pessoas. Jurara nada em vão, nada factível.
E agora, olhando para os pixels de uma tela cuja luz traz à tona um plano arquitetado sob a luz de um sepulcro, pergunta-se se é este o objetivo do desenvolvimento humano. Não importa, porém, o que digam: algumas pessoas não respondem perguntas simples nem saudações corteses. E podem não se importar com quantos caracteres se escreve amor e ódio, dualidade entre vida e morte, ou como os sentimentos alheios podem ser afetados por uma falsidade, uma mentira transformada em verdade, aleatoriamente escondida. Ninguém está se importando com o amor de verdade, apenas com quantos gozos se pode ter se brigar com aquele a quem a vida escolheu para ser sua alma separada do corpo.
E precisa começar a pensar, com urgência, que não são desculpas nem fugas que podem levar-lhe para o paraíso, pois este é apenas um estado em que os homens se encontram consigo mesmos e sabem, sem dúvidas, que fizeram certo, quando poderiam escolher o errado. Precisa refletir sobre o que se quer da vida eo que se quer de verdade de si e  do outro antes de tentar buscar, em outras bocas, outros braços, aquilo que não pode ser dado por qualquer indivíduo, mas somente por aquele a quem o universo o presenteou.
E pensando sobre isso ficou olhando para a tela, com os dois seres a fitar-lhe através da estaticidade de uma fotografia e de uns sorrisos forjados. As horas passaram, o sorriso continuou estampado no rosto e as perguntas do por que estar sorrindo quando deveria estar morrendo aos poucos, mais uma vez, ao invés de estar fulminando em uma alegria incompreensível.
Então se lembrou, subitamente, que a natureza da tristeza é a privação do bem-amado, da pessoa querida. E se essa privação significa sofrer sozinho, também pode significar sorrir sozinho, amar sozinho. Lembrou-se de que não precisa dizer, até mesmo para quem se ama, que a ama, pois o ato de amar transcende palavras e qualquer forma de demonstração. Amar é, antes de tudo, deixar o outro errar e machucar a quem mais lhe quer bem, e, mesmo machucado, sangrando, erguer olhos lacrimejantes e perdoar as punhaladas levadas. É, para si, permitir-se conhecer todas as facetas de uma nova criatura que pode ora machucar ora adorar e, mesmo assim, ser grato por isso.
Gratidão não significa fechar os olhos para o erro alheio, porém olhar os passos dados e reavaliar objetivos tendo sempre à frente, o bem daquele que o fez sofrer. Para muitos a gratidão é apenas um meio de achegar ao Criador sem nenhuma conexão com a pessoa mais próxima e, por isso, é perdoável traí-la, feri-la, maltratá-la. Doce engano. Como pode o Criador ver uma gratidão quando esta não passa de uma ilusão mental restrita ao próprio indivíduo e desprovida do amor? Gratidão é uma forma de amar assim como a paixão é uma forma de sexo, público, permitido.
E, desse modo, tentou explicar a razão de estar sorrindo, apesar de tanto infortúnio passado. Olhando atentamente para o rosto conhecido, verificou que não é o mesmo, apesar das feições serem semelhantes. Os olhos não brilham tanto e nem o sorriso é o mesmo. As roupas mudaram da mesma forma que o cabelo se apequenou, transformando o belo em comum. O conhecido está se transformando em desconhecido por um motivo obscuro.
O sorriso parou.
Escasseou-se ao constatar que um ser e todos os seus medos, perspectivas e perfumes ficam bem guardados dentro de si e de umas caixas, de uns objetos, dentro dos olhos e do peito enquanto uma casca vazia anda de um lado para o outro procurando ao que apegar-se quando tudo o que procura é-lhe oferecido em bandeja prateada. E talvez seja por essa razão que despreza, humilha, pretere.
O sorriso retém-se. A maturidade aflora no rubor provocado pela gargalhada. Chegou a hora de mostrar ao mundo e a si, que quem perde é o outro ao rejeitar aquilo é mais importante: a fidelidade, lealdade e a felicidade. Muito sorriso ainda dará, mas sabe que o seu eu-partilhado está se distanciando no barco do orgulho e das escolhas.
A cada um cabe seus pareceres e suas consequências. A cada um cabem seus sorrisos.

Desligou a tela. Vestiu-se. Saiu. 

*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael Rodrigo Marajá
**Texto agraciado no Concurso Nacional de Crônicas - Raul Gomes, Fundação Municipal de Cultura de Ponta Grossa - PR

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