21:30 - Alter-ego*

Quadro: The Sofa. Henri de Toulouse-Lautrec. MetMuseum

Alimentava-me de suas conquistas como se elas fossem o mais nobre manjar. Respirava seu perfume para que os odores do mundo não ofuscassem seu leve passar entre rosas e gramas. Se suor foi engarrafado e bebido nas noites quentes e, nas frias, destrancava seu calor para um adormecimento tranquilo.
Corrigi o mundo com toques de simplicidade, música, poesia, sorvete e publicidade – de beijos, atos, paixões. Distorci tudo como quem se desfaz de linhas envelhecidas tornando os recantos mais belos, apesar da poeira. E quando pensava que não podia fazer mais nada, surpreendi-me refazendo-me, reciclando-me, recriando-me sob todas as perspectivas existentes entre um ponto em uma nuvem cor de chumbo e o mar azul-esverdeado. Transformando-me em milhares de pessoas, tentei ultrapassar a barreira do possível, do tempo e dos desencontros. E para cada personalidade nova recém-criada também nascia um vício, um amontoado de atos destrutivos oriundos de mágoas e feridas profundas demais para serem eliminadas, mesmo em outra personalidade.
Acabei em pedaços. Tantos que é impossível juntá-los para reagrupar quem um dia fui. Em uma superfície lisa é evidente meu orgulho. Em outro, o alto-relevo demonstra o amor e as lágrimas derramadas. Em pequenos fragmentos, estão guardadas as lembranças, a felicidade, a paixão, a capacidade de perdoar. E, para cada dia, pelo menos em uma hora das vinte e quatro, recolho-me um pedaço qualquer e sinto a dor de uma partida injusta, mesquinha, egoísta de um alguém que me julga e me condena sem o direito da ampla defesa e do contraditório.
Em julgamentos sucessivos, diários, intermináveis, procura sempre razões para tachar-me como o monstro que deve ser usado, mas nunca amado. E na sentença ela diz: É condenado por ser pardo, nem preto nem branco; por amar sem ser correspondido. Está sendo condenado por pensar fria e realistamente; por não tolerar pessoas diminutas; por estar certo ao ver, antes do seu tempo, as consequências de atos e os desejos escondidos de uns tantos. Condenado a não ser correspondido e ser humilhado de todas as formas possíveis, inclusive no âmago de seu coração.
Uma sentença tantas vezes dita e aceita não mudou a realidade que existe dentro de um compartimento de músculo, sangue e bombeamento. Transformou-me, propositalmente, em uma chaga vivente que só vive lutando contra o desejo de estar perto, de sorrir, de ser feliz.
E tudo foi insuficiente porque a dualidade entre um eu te amo e um amar não basta acabei dentro de um inferno pessoal onde nada mais existe além de lembranças e quereres proibidos pela mesquinhez e pelo orgulho. Graças a um emaranhando de mentiras que só queriam dizer que não me amava por um motivo qualquer inventado.

Correções que não interessam à bem-amada e pedaços soltos de uma vida e de um ser destruído por um silêncio. Se nada mais importa, o que é então indispensável?


*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael Rodrigo Marajá

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reunião de faces

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

Nada além do que virá