22:00 - Mentiras queridas*

Escultura: Marble Statue of a member of the imperial family.  Met museum

Dir-te-ia sobre como o sofrimento adentrou minha casa e instalou-se em meus melhores recantos, mexendo em tudo e pondo continuidade naquilo que não havia mais caminho a ser seguido. De como rebuscou retratos sinceros do meu rosto ao amanhecer da noite turbulenta de sonhos em que se foi lembrando bons momentos.
Dir-te-ia das vezes em que a dor acompanhou aquele sofrimento insano e fez verter, de olhos secos e duros, gotas de um amor indissolúvel; de um estado sobre-humano no qual nada havia além da vontade de ser feliz.
Dir-te-ia que a felicidade é passageira, simples, concreta e que, se eu pudesse, não voltaria a ela, pois, tal como uma droga, ela vicia e é roubada por uma leve mão amada e, então, a agonia aparece e mostra que o tudo nunca existiu, o amor não passou de uma mentira e o sorriso foi apenas para convencer de que o controle estava mandando, não a emoção. E que, mesmo assim, foi bom.
Dir-te-ia que eu não queria parar de amá-la, não queria estagnar meus bons momentos, minhas melhores alegrias. E, no entanto, a mentira não quis mais ser sustentada, melhor, não quiseste mais sustentar a mentira na qual construí meus alicerces. E então, do ocaso rotineiro, a decisão veio e destruiu as ilusões noturnas para que, de manhã, estivesse livre para respirar melhor, ou não ter que mentir mais uma vez.
Se nada foi real, qual a razão de levar uma farsa a um ponto tão longe?
Não respondas para não teres que mentir. Não respondas para não criares um ambiente em que uma falsa educação vai expressar uma dura realidade em cruéis palavras indestrutíveis. Só...não respondas.
Entretanto, não olhes para trás. Não olhes para mim. Não há o que ver, porque já sorriste do sofrimento, da dor, da angústia com teu novo amor. Já esgotaste o poço de divertimento, mas não o da enganação. Não irei esquecer tua risada ao lembrar que em algum ponto do universo alguém chorava por ter perdido um amor, apesar de falso. Esquecer uma mentira é tão salutar quanto esquecer de respirar. Não se esquece.
E apesar de não me esquecer dos fatos, das flores, do sol, do parque, do sorvete, da praça, do perto-longe, das horas, da cumplicidade, do antes e do depois, da verdade e da mentira, dos teus novos amores e das minhas velhas lembranças, eu vou sentir saudade de ti.
Saudade do jeito de criança birrenta que parte um pirulito ao meio para dá-lo ao colega pidão, do choro da perda de um amigo, do suor escorrendo pela testa depois de milhares de cócegas. Saudade de não falar nada. Saudade de sentir aquele cheiro de pele suada, e da perfumada pós-banho. Saudade do tempo que escorria por entre os dedos com a velocidade da luz terrena. Saudade da mentira vivenciada, tantas vezes verídica pelos fatos do dia a dia. Saudade do sofrimento de perder-me quando tinhas que partir, para retornar no dia seguinte. Saudade, pura e simplesmente saudade. Saudade de ti.
Apesar de tuas faces, não tenho múltiplas vidas e só esta posso usar; e sinto-a indo embora sem aproveitá-la porque quando a oportunidade de vivê-la surgiu, não passou de uma brincadeira. A vida não quis isso.  Tu quiseste.
Então sorrias de todas as vezes em que silenciei por não saber o que dizer; por todas as vezes em que saí à procura de uma flor perfeita, mas única; do tempo que dediquei tentando fazer-te uma surpresa; das vezes que não consegui ficar longe e, quando forçado, morri a cada nascer do sol, enterrado a cada arrebol. Sorrias depois da minha dor, do sofrimento de ter achado que o problema era minha singularíssima personalidade.
Sorrias com teu novo amor.
E quando, um dia, lembrares de mim, não precisas fingir que não finges. Não precisas fingir preocupação. Não precisas mentir. Não precisas. Só esquece, quando lembrares. Pois teu amor, em minha cabeça, foi tanto e tão intenso que te odeio com toda a força da minha alma. E quando o cansaço de te odiar se torna sobrenatural, vem o amor para dizer que não se deve querer mal àquele ser tão amado. Porque no fundo e apesar de tudo, o amor é tanto que chega a esquecer as mágoas para a paz fazer-me adormecer.

E vou dizer que não vejo tuas fotos, que te afastei de minha presença. E será verdade. Mas, se lembrares bem daquele que tanto riu, saberás que, mesmo na maior tormenta, como na maior alegria, vou chamar-te para festejar comigo ou confessar-te minhas angústias. Porque, no fim das subtrações, eu te amo.


*Do livro Pavilhão do Vizir, Rafael Rodrigo Marajá

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