Um corpo sujo de batom

Foto: Esquina de Palmeira dos Índios - AL. Rafael Rodrigo Marajá.



O batom não queria ficar no lugar.
O dia já havia raiado há uma hora e ela ainda não sabia se deveria ir ou ficar sentada, sob o sol da manhã, esperando que ele viesse buscá-la.  Ontem ele não vira. Viria hoje quando outras amantes tantas já haviam passado por sua cama, seus braços, sua vida?
Não podia confiar. Decidiu-se rever seu cabelo no espelho do banheiro. Estava bom para o que tinha de fazer. Não iria conquistar a Grécia, e para isso qualquer coisa estava boa.
Voltou. Sentou-se. Olhou o relógio. Meia hora de atraso e sua paciência já refizera os pensamentos da noite passada sem a bruma do fatalismo. Ela ia cair de cabeça ponte abaixo e nem olharia para trás se ele, mais uma vez, não viesse busca-la. Achava inaceitável ir trabalhar sem a carona dele. E essa seria a última vez que teria que pegar um ônibus lotado, com o calor escaldante de galinha caipira em panela de bronze e o suor dos velhos ridículos a moldar suas curvas e sua mente profana.
Noite passada sonhara com a pele quente e levemente suada dele a forçar seu corpo contra a cama. Desejou morrer com a dor de um parto onde nasce a manhã, a vida e os devaneios. Quis aprisiona-lo entre os ferros musculosos de suas cochas, sem o pudor de ser a santa empregada de uma casa buliçosa. Ardeu. Ferveu e evaporou-se entre seus lençóis tendo em si a única certeza de como queria desfalecer um dia. Fantasias.
Uma hora atrasado. E os olhos correram do relógio da cozinha para o espelho do celular que irradiava sua foto nua – mandara sua foto na esperança de despertar uma excitação e nenhum oi tinha sido retornado. Agora tinha chegado ao limite.
Levantou-se. Refez o penteado do cabelo. Alinhou o vestido. Saiu para a luz da manhã onde a volta seria nada mais que uma fresta negra ponte abaixo.
A manchete do jornal não citou a mulher estirada na rua,  com o batom irritantemente fora do lugar e uma vida de ilusões escorrendo, vermelha, corpo abaixo.

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