Postagens

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

  O filme Maníaco do Parque tem levantado um muro de críticas daqueles que, normalmente, vivem sob o ofuscamento dos holofotes das produções estrangeiras. Há quem diga que a produção é rasa, há quem critique a contextualização de uma personagem fictícia e simbólica e há quem critique a falta de sangue e de violência explícita.  No fundo, o que se critica é a falta de carnificina, o cheiro do medo, o sangue enquadrado, os gritos de horror. E essas críticas derivam do fato de que vivemos à procura de carne apodrecida para satisfazer as nossas tão humanas necessidades de deleite sobre a desgraça do outro uma vez que não podemos, geralmente por força da lei, realizar os mesmos atos.  Maníaco do Parque, o filme, não possui as reviravoltas de criativos roteiristas que sempre encontram uma maneira de tornar as histórias mais vendáveis. Nem possui a assinatura estrangeira que daria, aos vira-latas de plantão, o sabor de uma "boa obra", mesmo que essa tal "boa obra" não pass...

Carta a um ausente XIX

Imagem
Arte: Portia, Sir John Everett Millais. Met.   Agora você não acredita, mas me parece que os seus esforços são insuficientes para ser o que pensou há alguns anos. É bem verdade que seu caminho acaba em mim quando se trata de pedir caminhos viáveis. E só.  Um dia, talvez quando estiver olhando o mar verde dessa cidade inquieta e malcheirosa, caia-lhe o pensamento na calçada e perceba que, até agora, muito pouca coisa tem importância e que, aquela você de outrora chora ainda em um quarto escuro com medo de ser reprovada por um círculo social ingrato e injusto. Olhando assim, de longe, parece que eu me perdi e não saiba muito bem o que estou fazendo de uma vida que caminha em direção ao Portão do Inferno, sempre olhando para o abismo real que suga almas sem esperanças. Talvez, de fora, tenha alguma razão. Afinal, a vida é para ser gasta.  É por isso que olho para você e percebo que a beleza que já vi sob o sol de agosto parece estar murchando com o peso de tantos p...

Crônica de uma vida insuficiente XXVIII

Imagem
Arte: Lion Sleeping, Antoine-Louis Barye. Met.   Mesmo tentando, olhando para a esquerda quando a paisagem da direita há dores imensas coletivas, não há como ignorar o tamanho do abandono em que vivemos.  Comemos o suficiente para não morrermos de fome e desempenhar essas atividades insalubres e com baixa remuneração. Não comemos, enchemos a barriga com plásticos, papelão, vidro, agrotóxico, venenos diversos. Pesados, saímos para sustentar o giro do capitalismo que nos nega o básico para sermos pessoas.  E, cansados, ao tentar dormir, não conseguimos porque nossa carência nos insufla a ir buscar aprovação em redes sociais, jogos de azar, ódio políticos e discórdias sociais, mesmo que, ao lado, roncando devido à gordura de uma alimentação ruim, haja uma pessoa que diz que nos apoia. Amores, perdidos pelo medo de não sermos nada além de pessoas, já não existem mais.  Aliás, será que chegamos mesmo a "amar" ou deliramos tentando não nos sentir sozinhos? Não, é...

Declaração vivificante

Imagem
 Foto Foto: Osiride statue of Senwosret I.Middle Kingdom. Met   Maria Bethânia canta  "Com todas as palavras Feitas pra humilhar Nos afagamos" E a madrugada, por mim, através de mim, sobre mim, escreveu uma petição digna de doutores advogados do tipo que não se formam mais em universidades, por obra e graça de redes sociais abstratas.  A cerveja segue gelada. O condicionador de ar segue tentando resistir ao ar quente da boca do inferno aberta no centro do Brasil. E eu sigo sendo o príncipe negro fruto de relações divinas de deuses negros, protegido por guardiões velhos e sábios. Caminhando no precipício de viver na borda de um mundo insone.  Eu sigo sendo um em uma multidão de iguais, tentando não ser igual, sobrevivendo ao absurdo de ser só mais um.  O futuro é a morte. E eu sou o incesto entre a morte e a vida. Eu sou a base, a coroa, o pó, o cume, o bandido, o herói, o Cão, o Deus.  E ninguém entende isso.  Elas passam, se benzem e se...

Os boçais transformadores do outro

Imagem
Arte: New York Daily News, William Michael Harnett, 1888. Met.    É engraçado. As pessoas entram na sua vida - e, às vezes, você só que instrumentalizar antigos dramas para revivê-los ou superá-los - com a arrogância de serem as únicas. A transformação que pretendem operar em você ou no seu estilo de vida é o objetivo da relação e serve apenas para mostrar que podem fazer - não que, necessariamente, seja o melhor.  Então, um dia qualquer, tudo degringola e você acaba sendo o que sempre foi, limpando não os cacos de si, mas a sujeira de ter se misturado com os porcos para saber como estes vivem. E segue a vida como se a estrada fosse um detalhe e o importante é não ter ou ver importância nas pequenezas dos relacionamentos e do pós-venda desses relacionamentos.  O tempo vai fluindo, você vai se limpando e os resíduos sólidos e líquidos são recolhidos pela limpeza pública. O tempo, sempre o tempo, julgando a todos e sendo impiedoso, para o bem e para o mal.  De rep...

Nada além do que virá

 Quando escrevi A presunção da importância refleti como somos tão pouco importantes em um mundo dinâmico composto por pessoas substituíveis e se reler Recado amistoso   poderá entender um pouco mais sobre as entrelinhas da instrumentalização do sexo.  Entre pernas que se abrem e bocam que bebem o gozo de desconhecidos de nomes populares estamos todos suscetíveis a sermos apenas instrumentos, corpos e números. Parece que isso já é tão aceito que na nova forma de fazer política quanto mais seguidores se tem mais apto a ser um candidato a cargo politico. A questão que ressurge, assim como acontece na seara da artes, é: quantidade de seguidores significa talento ou competência para ser artista ou político? Em breve poderemos ver, tal qual acontece no Pantanal, a queimada dos mais diversos campos sociais em um fogo causado pela ânsia de transformar redes sociais em instrumentos corriqueiros de poder.  Obviamente isso não dará certo como jamais deu certo importar hábitos ...

Novo humano primaveril

 É primavera no hemisfério sul e no centro geodésico da América do Sul nada se vê além de fumaça e de uma paisagem coalhada por prédios cinzentos de fumaça. Calor e fumaça. Sem sexo - já que ninguém aguenta montar sobre corpos sob o efeito de detritos e vegetação queimada nos pulmões -; e sem apetite - o calor não permite nada além de uma insana vontade de beber água ou uma bebida açucarada qualquer, o dia vai escorrendo, na lembrança de um suor que não existe em virtude da baixíssima umidade. Há emoções latentes que não se atrevem a ultrapassar a barreira do aceitável socialmente. Há homens que se amam. Há mulheres que se desejam. Há casais que não mais se tocam. Há corpos mimetizando pessoas.  A primavera começou. Sem poesia, sem expectativas, sem amenidades. Apenas começou porque deve, não por que escolheu. As músicas que apaixonavam e abriam essa estação retratam um tempo sem calor excessivo, sem falta de água, com flores e olhares singelos (se um dia houveram). Hoje a pri...