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Mostrando postagens de janeiro, 2023

A queda dos monogâmicos

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The personification of peace. MET. Meia palavra basta. Uma escolha por ser ausente basta. A publicação das escolhas basta. Entende quem quer e quem pode. É por isso que agora eu observo, na claridade da luz do dia de verão mais quente e calorificamente intenso, a queda de certas relações monogâmicas com a mesma certeza que temos, hoje, da queda de impérios, regimes, governos, populares figuras. Porém, não se engane, não é a espera pela queda de certas monogamias de periferias que importa por inveja, ressentimento ou ciúme; não é. É apenas a confirmação, cedo ou tarde, das consequências das escolhas, dos silêncios, da corrosão de relacionamento que precisam de muito esforço para sobreviver. Relacionamentos amorosos, amigáveis, paixões contidas em máscaras diversas. Não precisa justificar.  Não precisa fugir. Não precisa dizer-se feliz em uma redoma social. O tempo está aí, correndo em seu fluxo imparável, rumando para as quedas - de cabelo, de dentes, dos seios, das nádegas, dos rel...

Percorrendo a linha de mim

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  Bust of an Old Man Wearing a Fur Cap, Jan Lievens. MET. No passado corri léguas sob o sol por quem me jogava migalhas e feliz me encontrava - tantos traumas me açularam ao erro, à discordia, ao caminho longe de mim que hoje não mais percorro um metro por ninguém, às vezes nem por mim.  Agora sou esse - solitário perdido em meio a meus pensamentos mais banais, perdido na estrada da vida e sem saber para onde ir, apesar de saber com a máxima certeza que não vou seguindo ninguém, para nenhum lugar. Amanhã, quando eu acordar, vou saber que de todas as humilhações por que posso ter passado  nenhum remete-me à mendicância de afeto, de atenção, de carinho. Sim, pode faltar-me o alimento, o exercício físico, o teto, a cama, a cadeira, a fé; só não me falterei a mim.  Assim começa uma madrugada, aninhando um dia.  Assim prossegue minha vida. Assim eu sigo.

Ultimátum

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View of South Street, from Maiden Lane, New York City. MET.   Aos poucos, sem alarde, sem mensagens dramáticas, sem olhos chorosos, em um estado de vívida depressão, vou me envenenando aos poucos, sendo imprudente aos poucos, sendo autodegradante ao extremo.  Morro aos poucos, de faltas imensas que foram transferidas, geração após geração, até chegar a mim, sempre com um requinte a mais. Falta o teto, o alimento, o lugar para a memória feliz e para a fotografia, faltam os sentimentos, falta a dignidade.  Morro aos poucos pelos excessos que a falta faz.  E, sendo um moribundo à beira da estrada da vida, marginal das próprias construções sociais, não é estranho querer deixar essa vida de serventia ao alheio. Não é.  Loucura indescritível é fazer diariamente o que outrem deseja e esperar conquistar-lhe sorrisos e palavras cálidas. De mim só quer a minha força para construir seus castelos e manter o cheiro de mofo das edificações erigidas em um passado sangrento. Po...

Palavras em riste!

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Hiawatha ,  Augustus Saint-Gaudens. MET.   Ali na esquina da praça Horácio Souza Lima, onde tantas expressões são manifestadas diariamente e por tantos indivíduos particulares, ouvi, em alto e em bom som, que  "quem sai com viado é viado também!". Atirada à queima roupa em um meio-dia parece mais um assassinato à liberdade de expressão do próprio querer de sair com quem desejar para não parecer viado . Ora, passou o tempo e a geração de quem se escondia entre becos e palavras codificadas para marcar encontros e expressar afeto pelo mesmo gênero. Os lugares escuros, fétidos, sigilosos ficaram para aqueles que andam armados com problemas sociais de autoaceitação e extremo julgamento da vida alheia.  Ao meio-dia, de qualquer dia, a fome bate à porta de homens e mulheres e ignora completamente os frequentadores das camas; a violência, por outro lado, assim como as criaturas armadas de palavras, escolhe lugar, cor, gênero e classe social, vitimando gays, pretos, periféric...

Comida de monstros

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Foto: Funerary relief. ca. 200–273. MET. "O infortúnio é múltiplo. A infelicidade, sobre a terra, multiforme."  Berenice Edgar Allan Poe  Procuramos infelicidade em tudo o que nos cerca, até mesmo nos momentos de felicidade e tranquilidade, porque não sabemos lidar com estas duas facetas da vida. Fomos talhados para a agonia, para o trágico, o drama, as ruindades do cotidiano. Se algo nos vai bem logo procuramos  um ponto sensível para sermos molestados por nosso próprio modus operandi de viver em estado de lágrimas.  Traições, palavras falsas e cruéis, pessoas a oprimir e sermos, por elas, oprimidos, escassez transformada em excesso - elementos de uma vida viciosa que nos espera a cada noite.  Somos seres mesquinhos com nossa própria alegria de bem estar e isso nos mata aos poucos, cada dia uma dose maior, cada hora um momento morto por nossas mãos assassinas de bons momentos. De repente isso é reflexo da doutrinação cristã que nos imprime à mente a ideia de qu...

Palavras de um velho

 Nunca, nunca mesmo, devemos voltar para onde tanto lutamos para sair, mesmo que seja a única opção. As coisas tendem a dar errado porque até as pedras da rua, seus pensamentos mais obscuros e seu íntimo sabem que aquilo, aquele lugar, aquela pessoa são representações de algo ou um momento terrivelmente ruim. Quando voltamos, por descuido ou sentimento de urgente necessidade inaudita, vemos os caminhos que dão em terrenos baldios, misérias sem fim que nos coloca em pé de guerra com nossa própria boa vontade. Tristes história de um velho que se mata a cada encarnação por não saber como encerra o ciclo curto da vida - são essas as reminiscências de quem sabe que voltar nunca significa boa coisa. Há que se dizer, no entanto, que nas vezes em que voltamos (e apesar de tudo o que foi escrito não são poucas as vezes) igualmente nunca somos os mesmos, nem as circunstâncias são as mesmas, nem mesmo o espírito alheio é o mesmo. Não obstante tudo isso, esse velho volta, sempre volta, a essa ...

Inflamado estar

 Está aí, o tempo, a chave da porta, o cadeado destrancado, a rua livre, a desconexão com os pudores. Tudo está pronto. O caos no devido lugar. Mais tarde, quando a rodovia estiver sendo ocupada pelo movimento dos automóveis e o dia exigir rotina, comida, sono, metas, trabalho, família nada mais poderá ser acrescentado. Eu talvez não poderei ser acrescentado. Talvez eu já não esteja mais aqui, sob casas de aranhas e entre poeiras diversas, quando a porta resolver abrir por livre e espontânea vontade. Um dia, que sempre chega, o prazo de validade acaba e então só o resquício de uma lembrança há de sobrar. E é assim, demonstrando na medida apropriada e ressalvando o que um dia pode sumir, que a liberdade existe para todos. Isso, ao contrário do caminho até aqui, não é para fazer sentido. É para queimar a madrugada, a mente, os olhos, a vida. Isso é o que sobra quando nada mais é suficiente. 

Orgânico Robô

Não adianta esconder sua coleira virtual. Nas suas roupas, no seu modo de falar, na sua dependência pela aprovação que vem do julgamento alheio e na sua carência agressiva e raivosa - em tudo o que você esbraveja cotidianamente é possível perceber a sua coleira.  Cansando pai, mãe, irmão, filha, vizinho, colega de trabalho você segue tendo sua vida ditada pelos algoritmos do Vale do Silício como um animal abandonado que a muito custo encontrou uma mão de ferro para dominar seu corpo, seus atos e sua mente. Agora você não lê textos maiores que um parágrafo de 240 caracteres, não desvia o olhar da tela na rua, sente a necessidade de tudo gravar, não aproveita o percurso de um processo de crescimento. Agora você é só um robô orgânico que precisa trabalhar para manter o algoritmo. Agora você não é nada além de uma máquina com  necessidades orgânicas e sua coleira virtual sinaliza que sua inteligência está em franca obsolescência.

Incertidumbre

Amanhã, talvez, eu não acorde. Ou acorde e não saiba como serão as horas - essa é a sina dos velados desvalidos e dos pobres latentes.  Amanhã há de ser outro dia, é verdade. Porém, velhos carmas ainda persistem como marcas visíveis de uma vida que oscila entre barrancos e planícies. Um quê de incertezas norteia a escrita desses dias que parecem ser mais alheios que meus. Sobre o amanhã eu não sei. O que imagino é o suficiente para caminhar com o peso de viver e, mesmo que isso não baste, é o que existe para o agora.

O primeiro domingo

Pela tela desiluminada do meu aparelho móvel eu vi a dedicação na cozinha, lavando os pratos enquanto no forno a comida ficava pronta. Eu vi por uma tela desiluminada e em sigilo. E não pude deixar de ser aquecido pelo tempo dedicado à arte da culinária, à recepção, ao entendimento implícito, ao silêncio. O ano começa entre pelos, sob garfos, ao som de espirros e com olhos marejados ao observar a correção de uma das inúmeras injustiças cometidas contra o povo, em um passado próximo. Olho para o rosto suado, para a pele negra e sinto o suor com os lábios. Eu não sei como será amanhã e onde poderei estar. Por hoje, eu sei, isso é suficiente. É tudo.