Crônica antiquada da vida do homem moderno*


A vida é mulher. E a maioria desagradou a essa mulher. E foi assim que a pobreza apareceu no mundo, como forma de vingança dessa entidade feminina. Se pudesse ser vista, a olho nu, nua estaria ela, sentada na areia da praia, observando as ondas e pensando em como faria para tornar divertida a pobreza de seus injuriadores, enquanto o vento serpenteava em seu cabelo e o sol bronzeando levemente sua pele.
Talvez não seja bem verdade que a vida seja uma mulher, e que esteja nua à beira mar tomando sol, mas que é igualmente interessante pensar nela como um ser algoz que torna o homem uma criatura divertida em meio às suas dificuldades diárias. Entre uma vida feminina, vingativa, e uma vida masculina, cafajeste, é melhor pensar nela como na primeira opção pela razão notória que aquela sempre se compadece quando o homem chora. Este raramente se sensibiliza ao notar as lágrimas alheia.
Pois enquanto está lá, na quente areia do litoral, o homem mal dorme, acorda cedo e corre em desespero para o ponto de ônibus, onde muitos irão passar e não pararão porque estão superlotados (as pessoas dentro dele estarão imprensadas contra o vidro das portas – aquelas que ainda fecham – e outras estarão quase praticando atos carnais contra a própria vontade a cada curva fechada, ou a cada freada, do automóvel). Então choverá e ele vai acabar subindo em qualquer ônibus igualmente superlotado com outras pessoas cujo único banho tomado foi o da chuva recente. E vai trabalhar carregando sacos de cimento para impulsionar o desenvolvimento do País através da construção de imóveis nos quais jamais poderá entrar, pois em centros de consumo de alto luxo, ou de média pobreza, serventes não conseguem comprar nada.
Quando, depois de meses economizando, entra em uma daquelas gordurosas e nauseantes praças de alimentação de algum shopping destinado a pessoas como ele, verá que a massa mesquinhamente recortada e mal cozida pouco servirá para aplacar seu desejo de alimentar-se naquele lugar luxuoso - do seu pobre ponto de vista. E o melhor será mesmo ir ao mercado municipal onde, embora faça sua refeição de pé – como um cavalo – poderá apreciar a brisa do rio e comer o seu caranguejo com dois dedos de aguardente, aliviando, ao mesmo tempo, a sede de fantasias e a fome quase nunca saciada.
Talvez vá para casa, onde estará sozinho já que quase nenhuma mulher quer viver à sombra da subnutrição de futuros possíveis e inevitáveis filhos e na incapacidade permanente de ir ao cinema sem pensar na falta que o dinheiro daquelas entradas irá fazer no aluguel do mês vindouro. Talvez tome mais algumas doses de sua aguardente e procure uma cama por ali mesmo onde uma mulher, devidamente partilhada entre outros tantos homens, em outros horários, evidente, irá fazer sua noite da mesma forma mecânica e capitalista que as lanchonetes fazem suas frituras.
Então, pela manhã, em todas as manhãs de sua vida até o dia em que seu corpo não aguentará mais carregar sacos, madeira e desenvolver o País, perceberá seu corpo envelhecido pelo sol que castigou sua pele nas longas horas de trabalho e na infelicidade de nunca ter realmente aproveitado a simplicidade do que construiu para os outros, em um futuro que diziam ser para seus filhos. Aqueles mesmos filhos que ficaram no sonho de uma mulher prostituída aos dezesseis anos como forma de castigo por ter perdido sua inocência com o malandro da rua de trás à sua casa - aquele cujo único destino era o fim certo em uma vala coletiva no alto de uma serra -, que jurara amor eterno e ela, no mesmo tom embargado, prometera-lhe sua vida e seu corpo. Notará sem grande esforço que sua vida, ou o que diziam que era vida, esvaiu-se no sangue que deixou cair quando desabou escada abaixo, na fraqueza de suas pernas e na falta de um coração forte, até o último degrau do cimento rachado de uma pensão decadente onde velhas senhoras de respeito e família ainda fazem a vida para manter os bastardos da sociedade.
Então ela levanta, limpa a areia do corpo, toma uma água de coco e vai para o enterro de mais um. Vai certificar-se que o homem realmente morreu.

A vida, então, segue.

*Crônica finalista no Prêmio Jovem Escritor - Ledo Ivo. 2º lugar.


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