Anístico*

A madrugada tem os pelos que voaram das brincadeiras alheias de cães e gatos, muitas das quais o perigo de uma morte fez-se presente nos mais elementares momentos inesquecíveis. O perigo não é o de uma morte sem presença de palco em uma vida completamente banal, tão igual a um infarto na hora gloriosa do recebimento de um prêmio, mas de uma vida na qual somente os olhos humanos a viram.
Com olhos de lince, que mesmo nunca tendo visto um sabe da agilidade daquelas retinas, os felinos vêem, no espectro azul, a cor do que importa e corre, entre perigos e cães, a linha tênue que leva à cama nessa madrugada fria. O mesmo início de dia que acomete de infortúnios diversos seres pelo mundo ainda escuro é o mesmo que incide sobre a cômica tragédia que é não sorrir frente às ironias trazidas logo mais pelo sol.
Se é mais divertido escarnecer dos percalços do dia, por que teria que chorar sob a lápide de desimportantes fatos? E, sorrindo das tragédias pessoais que quase ninguém acreditaria estar acontecendo, é que os cães dão a volta e uivam para a lua encoberta, levantando os mortos e todas as suas divertidas histórias. Há quem diga sobre o pessimismo disso e há quem se divirta convidando-os para um café puro já que a essa hora o dinheiro já acabou e nada mais resta além de amortizar o dia vindouro com uma bela história para contar.
Existe quem precise de balões coloridos e uma casa cheia de infelizes, sorrindo para disfarçar a desalegria que é a prisão do objeto material, e um enorme bolo com uma camada de doce e outra de recheio açucarado, repetidas diversas vezes até a altura de um prédio de dois andares. E quem, no fim da abastada festa, senta-se solitariamente na cozinha, entre restos de festa e presentes inúteis e pensa, com a clareza da luz azul, como é desnecessário tudo isso. Nesse momento, graças ao Universo, a pobreza a ataca e a resgata desse triste fim – é melhor estar falido que com inutilidades na cabeça, no coração e nas mãos. Graças ao Universo os pelos ainda presos aos corpos dos felinos e a atenção dos cães guardam o que é realmente importante e o que se pode esperar de um dia como este.
Ah!
Quando os mortos resolverem tomar posse de suas vidas, aqueles mortos-vivos, já será tarde. E, quando a tarde chegar, mais uma vez, terá que ir atender às alegrias das milhares de patas, com toda a sujeira útil e o sorriso divertido sobre tudo aquilo que cerca a tristeza daqueles que não têm mais nada que coisas e objetos.
Talvez seja assim que aconteçam as melhores coisas da vida: entre os percalços. E talvez fosse bom que os percalços fossem menos. De uma forma ou de outra, não fossem eles, não teria a preciosidade da história que vive e constrói no dia a dia estressante e ridiculamente inacreditável. Talvez seus presentes nasceram e vivem comendo ração. Talvez não. Quem vai saber?

O certo é que há uma garrafa de vinho fechada e histórias para serem contadas e inventadas. Fotografias a serem tiradas e muita gulodice a viver.



*Publicado na antologia Solilóquio, da Cogito Editora.


Clique aqui e leia Um quarto no escuro.

Clique aqui e leia Áspide.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reunião de faces

Maníaco do Parque: entre o personagem e o homem

Nada além do que virá