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Mostrando postagens de maio, 2022

Porta-Estandarte

Embora o mundo não canse de ser indiferente e aprendamos com ele a arte cruel da indiferença, continuamos seguindo em frente, olhando para o além, mesmo sem esperança ou perspectivas. Gostaria de abrir a minha porta e olhar as nuvens carregadas com a admiração de alguém que descobre algo novo; gostaria de ficar acordado esperando o raiar do dia na ânsia de poder ter a alegria de começos e recomeços. E seria uma alegria ter a ingenuidade ignorante daqueles que em tudo creem, mesmo diante das maiores estupidezes. No entanto, o que tenho é o oposto disso tudo porque aprendi com propriedade tudo o que o mundo quis ensinar-me. E ele me ensinou a apatia, a indiferença e a melodiosa audácia das propagandas mentirosas.  Está, a desfilar na rua, a segunda-feira. E eu sou o porta-estandarte da ironia. E isso é tudo o que há para contar quando o sábado terminar.

Blasé

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Lá fora chove lágrimas de famintos que trabalham diariamente em ocupações blasfemas. Lágrimas de quem não pode comer bem para não ofender ao patrão. Chove gotas de sangue de favelados, de pretos, de pobres, de não-héteros, de mão-de-obra barata, de gente. Sangue que lava ruas sem saneamento básico e o chão de supermercados erguidos para a pseudo classe média. Lá fora tem a bebida, o sexo, a droga ilícita.  Lá fora tem a vida.

Poema cansado

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Foto: Rafael Rodrigo Marajá. Que me falte cãibras Que me falte sossessogo Que me falte esperança  Que me falte alimento Que me falte a paixão  Que me falte o vil metal  Que me falte a felicidade Que me falte o estar  Que me falte o ser Que me falte o lugar Que me falte o amigo Que me falte a poesia Que me falte a energia Que me falte o amanhã  Mas que nunca me falte a ousadia de ter coragem.

Amor em oito mãos

É entendível ter três mulheres, em cidades diferentes, com aspectos culturais e físicos ímpares. Uma tem a cor da terra agreste, embora a delicadeza torne-lhe ainda mais bela à luz do sol nascente. Outra tem o frescor da noite, manhosa como uma fera em rara descontração. E a terceira possui o vigor de dez furacões em terras virgens de intempéries tão violentas. Quando sua casa é o mundo, o abraço terno e forte faz-se presente em braços coloridos, de nomes diferentes, com desejos desiguais. Há orações no almoço. Há lascívia na sesta. Há paixão bruta no amanhecer. Pode ser que alguém brade que isso seja só safadeza. Pura maldade com o coração nada romântico delas.  Elas sabem, mesmo que não digam, que é preciso mais de uma mão sobre a carne que lhes pertence em rateio.  Sim, elas bebem o mesmo leite, amassam a mesma carne, batem no mesmo lombo.  E isso é o amor em faces diversas.

A felicidade masculina

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O banheiro está livre. Vazio. Um entra. Desabotoa a calça. Espera.             Espera.                          Espera. Outro entra. Olha ao redor. Observa o ser à frente. E aproxima-se. Toca-lhe o ombro. O primeiro vira-se.  Falo em riste. A porta se fecha. Os homens são felizes                                       Somente em banheiros públicos.

A normalidade da rodoviária

Faltam poucos minutos para a hora da Ave Maria. A luz piscante da rodoviária tentar deixar o ambiente sombrio. À minha frente uma mulher, ao telefone, indigna-se com o relacionamento em colapso em controlada indignação. "Já são dois finais de semana...não acredito no que eu tô ouvindo..." Explicações vazias são dadas. Um romance falido encerra a ligação. E somente a falta, apenas a falta (seja lá do que for) mantém a criatura sentada, passiva e alheia ao que poderia acontecer se tivesse o ânimo para ser o auto-preenchimento emocional que tanto busca e precisa. Os mosquitos começam a aparecer e o frio está insidioso na rodagem, querendo entrar portão a dentro. É sábado. É o fim.

I know, você sabe

Eu sei e todos compreendem que no caminho há seculares desafios, opressivas opiniões, ditadores mal-quereres. E se não há armas suficientes para lutar contra tudo isso, que pelo menos tenhamos a maleabilidade necessária para evitar a desnecessária batalha. Hoje faz sol. O ônibus está mais vazio e embora a mala caiba pouca coisa, tentei levar o básico e deixar as dúvidas e pseudo entraves que tentam me acorrentar. Talvez chova, não sei. A Bahia é grande e cabe muitas identidades. A minha é agreste. Eu sou agreste.  Eu sei. E agora você sabe também.

A estrutura social

Quando entramos em contato com os trabalhadores do nível operacional, e cotidianamente precisamos fazer isso, deparamo-nos com robôs humanos que recebem um parco pagamento para manter a engrenagem do ecossistema ao qual pertence funcionando. E problemas estruturais de uma sociedade pobre e doente são perceptíveis: meios de transporte precário, alimentação regradíssima (ao cúmulo de quase faltar), nível de formação acadêmica duvidoso e criação e manutenção de castas entre esses mesmos trabalhadores. O resultado é óbvio: clientes insatisfeitos, serviços inconclusos ou terminados aos tropeços, visão de faturamento e nenhuma visão de capital social, além de uma gestão temerária.  Não pense, no entanto, que isso é novo. Não é.  Nesta colônia que fingimos ser um país independente, o Brasil, temos uma massa de escravizados que se mantém na senzala moderna, com energia e internet apenas. Uma infeliz e triste realidade que não se pode, ainda, ser ultrapassada devido à crença de que o c...

O trabalho: uma relação de paixão

Há momentos em que precisamos de uma reflexão realista sobre o motivo da nossa desmotivação no trabalho, pois, como em um relacionamento qualquer, só a paixão e o ambiente não bastam. É preciso mais. Um pouco mais. É preciso que o riso não seja visto como uma ofensa; que o crescimento do outro não seja tido como uma ameaça; que momentos de coleguismo sejam incentivados e que as relações interpessoais sejam efetivamente sinceras e verdadeiras (sempre dentro da realidade exposta).  Isso não é utópico, não é inalcançável e nem distante do nosso dia a dia. E é preciso muito pouco para vivenciar isso em nossa rotina laboral: basta apenas a ousadia de encarar o ser humano da mesa ao lado com respeito e ouvir quando se deve ouvir.  É possível a liberdade religiosa e sexual no ambiente de trabalho desde que dentro da atmosfera de respeito. E só dentro dela. Infelizmente a deficiente formação acadêmica e pessoal do indivíduo não permite que tenhamos um ambiente assim,  constante o...

Dia 05

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Você não sabe, mas as pedras soltas da rua; Os cactos da beira da estrada; O boi pastando perto da cerca; O pedinte da rodoviária; O fiscal de postura da feira; A professora grávida; A atendente da churrascaria do posto; O dono do barzinho; O diretor da Funasa; O meu diário; A minha Senhoria; Os vizinhos da outra rua; Os desconhecidos das redes sociais; As pessoas dos ônibus lotados; A  vendedora de pastel da esquina; Os familiares esquecidos; O seu namorado; Todos sabem que o meu motivo é você. Só você não entende que nesse mundo redondo nós acabaremos juntos, mesmo que eu me demore no norte e você, no sul, perca a hora.

Visão míope

De baixo para cima é possível ver tudo: A fome; A violência; A hipocrisia social da classe média; O terror do abandono; O crime batendo à porta; O descaso; A morte em vida. De cima, tudo é lindo. Todas as questões se resumem em "força de vontade", "cultura da preguiça do pobre", "dinheiro mal gasto com pobre". O problema é quando quem está embaixo crê estar com visão panorâmica. E esse tem sido a triste sina metrópole brasileira que nunca deixa de se enxergar como colônia.

Na altura de Paiaiá

Nesse pedaço de chão, observando passivamente as casinhas perdidas e os caminhos de terra, sinto-me um retirante em busca da fé, como aconteceu não muito longe daqui e que hoje é só água. A noite começa a cair e o mundo tem aquele tom colorido que não sabemos descrever e que, por falta de expressão melhor, chamamos de melancólico. Dependendo de quem olha, o pasto se cobrindo de noite que vejo pode ser uma seara mística e ritualística como também pode ser lacrimoso cenário. A vida não é fácil - para mim que não tenho paradeiro; para esse povo que só conhece o sol e as duras mãos do poder; para você que vive tão longe de si. Para onde vou ninguém me espera. Por isso a pressa não está em minha bagagem e por mais que eu me atormente com a minha histórica pobreza material, há uma dormência onde nada tem importância e eu, sendo também o próprio nada, entendo a minha importância em cada instante e em cada lugar. Linhas de transmissão de energia elétrica alimentam seus fios e botões e servem, ...