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Mostrando postagens de julho, 2022

A travestida feiura

Sentado na recepção de uma home care fico observando a feiura das pessoas. Nestante saiu uma mulher, aloirada pela química agressiva para cabelos, que disse, achando-se muito elegante, que se tivesse que voltar iria "descer do salto". A mulher, cujo peso da idade consumiu-lhe as carnes e somente a máscara descartável oriunda da pandemia tapa-lhe as rugas e os dentes, tem a cara da classe média que pretende segurar a vida em corpos degradados.  A vida não aceita cárceres. A vida despreza o degredo. A beleza não parece obedecer ao dinheiro retido sovinamente em heranças travestidas de amor. E se esta ainda pode ser simulada, a feiura, tal qual o ódio, não o pode. É sempre exposta, chocante, nunca elegante.

Eu sou luz

A argila verde vai secando sobre a pele dos meus olhos, revitalizando, limpando, cuidando de mim a despeito da inexistência de uma consciência argilosa. Meus olhos, carregados de sonhos nas pálpebras,  mal sustenta o olhar sob o assédio do cansaço.  Sorrio ao pensar que a noite mal dormida teve sonhos frutos da minha necessidade, do medo e da angústia. Eles passaram ao acordar. Tudo passa. Na manhã seguinte nada resta e a radiante luz da manhã emana de mim, passa por mim, volteia sobre mim. Eu sou a luz. E a sujeita que escorre pelo ralo da pia é a sujeira sem nome que me cansa na rua, nos aparelhos conectados, na obrigação de falar com desagradáveis pessoas. É noite e um seriado de TV marca o tempo.  Em poucas horas eu serei luz novamente. Luz.

As dores dos que passam

Sentado no banco da praça Luiz Nogueira, olhando para a igreja católica do século XVIII, penso no que pode estar se passando da cabeça dos transeuntes.  O homem com relógio dourado, celular à mão e envelope de papel pardo embaixo do braço passa conversando com alguém que ficou à porta de alguma loja.  Os mototaxistas, esperando um cliente, estão jogando conversa fora. A mesma conversa de todos os dias? Os vendedores do varejo de uma cidade pequena onde todos se conhecem tentam sobreviver ao tédio, ao ostracismo de uma profissão fadada ao enriquecimento de alguém cujo nome é conhecido, mas desprovido de rosto. Os trabalhadores de uma obra pública são os únicos estrangeiros que quebram a rotina de um povo que se ocupa apenas em sobreviver em horário comercial. Olho para todos os que passam entre carros, pessoas, bancos e árvores e imagino o que lhes pode provocar aflição, tristeza, desânimo, profundo mal-estar consigo. Quantos, neste exato momento, podem estar desejando o fim de...

Largo de Santana

Tenho vontade de sentar no Largo de Santana, observar os trabalhadores que todos os dias movimentam as ruas estreitas do centro da cidade e pensar e observar. Sim, só pensar e observar o vai-e-vem de pessoas que, como eu, carregam problemas, aflições,  desejos e desamparos. De tanto querer estar leve somos pesos que se arrastam pelo Largo esperando o dia acabar. Esperando poder deixar de ser por poucas horas. Em minhas mãos há sacolas cujo peso da inflação aperta minha conta, mas que nem ofende meus dedos. Em minha mente há pódios não alcançados na luta mensal por chegar lá.  Lá!  O lugar que queremos estar para ganhar mais dinheiro e que sabemos, sem dúvidas, que é hostil por natureza. Pensamos que lá será bom. Será?  Eu sei que um dia esses ciclos de hoje que me trouxeram até esse Largo serão encerrados. E nada poderá impedir isso. E é um consolo. Não posso parar para sentar, não posso pensar e nem me demorar. O Largo é lar de movimentos e fazeres. E o que me conso...

A Fome

A fome bate à porta da empresa em que você trabalha travestida de mendigo e segue caminhando com xingamentos e críticas pela calçada à  fora. Acham ela normal - "um caminho que o indivíduo quis". Depois, no ponto de ônibus ou no sinal, você no conforto do seu carro, a fome limpa o seu parabrisa. Você nem sequer retribui com moedas. De novo, "não se pode apoiar a vagabundagem". Você chega em casa e a fome já lavou seus pratos, cuidou dos seus filhos, assumiu o seu papel enquanto você se ocupava com a máquina de moer gente.  A fome, batendo em seu estômago por dois segundos, é então prontamente atendida porque "o dia foi muito cansativo". A fome, vendada, é instrumento de poder, de política, de manipulação de massa, de revolta.  A fome tem nomes genéricos - Maria, João, Antônia, Pedro... A fome, no outro, é chacota. E esse é o problema. O outro é só você amanhã caso nada seja feito hoje.

Enquanto cai a preocupação

Sentado no vaso sanitário, um pé sobre o tapete e o outro no chão frio. O pensamento turbulento, cheio de dúvidas e aflições criadas apenas para minar a  certeza de nos objetivos e metas. Penso no que ouvi na rua, nas pequenas mentiras que preciso contar para poder conseguir sobreviver mais um dia, nas necessidades, nas faltas materiais, na fome de mundo. Penso em mim e em uma forma de ser egoísta sem prejudicar ninguém. Penso. Parecia que ia chover. Estava frio. Lá vem a pequena cólica avisando que minhas preocupações estão prestes a sair. Duro. Fico rígido lembrando daquela bunda. Tudo muda. Minhas preocupações caíram na água. Eu quero possuir aquele rabo delineado. E essa é a nova obsessão que devora todo o resto - até mesmo o bom senso.

Todos os caminhos

Todos esses caminhos que cortam montanhas e atravessam rios são também meus caminhos, com sombra, com sol a pino, sem pousada à vista, sem muito o que ver. Sempre a pé, percorrendo esses caminhos hostis em sua natureza, vou seguindo. E paro para descansar em avassalador desalento por não ter para onde ir e chegar.  Sempre a pé, confirmo a minha desolação de caminhar em um mundo que não me abriga nem me apaixona. Meu ódio derreteu sob o céu do verão e amores, sempre pueris, desfizeram-se no orvalho. Eu sigo caminhando, cada vez mais devagar.  Um dia, eu sei, eu finalmente vou parar. Não será hoje, eu sei.  Hoje eu continuo caminhando com pesos que me entristecem a face ainda ingênua do meu ser.  Hoje, ainda, eu continuo por esses caminhos, a pé, carregando esses pesos que não se deixam ficar.  

Orfandade

É fim de tarde. Da minha janela vejo a BR 116/Rod. Santos Dumont e, mais perto, vejo crianças que brincam em algazarra no coração do bairro.  Eu vejo a luz que vai se apagando tornando o verde das árvores mais escuro. Eu vejo o quintal da casa ao lado e as janelas dos fundos das casas vizinhas.  Eu vejo as luzes que já estão acendendo aos poucos. Eu vejo as nuvens de junho que trazem a promessa de frio para o centro-norte baiano. Eu vejo a minha imagem se apagando em meu antigo porto. Eu me desvejo em fotos antigas. E não há nada a ser dito sobre esse fluxo contínuo de mudanças que sucedem porque isso é a vida, incluindo sair da vida de outros, me embrenhando na minha mais íntima vida. Eu sou órfão prematuro de outrem. E isso é tudo.